Vendo sem Enxergar ou Homens como Árvores Andando
Por C. H. Spurgeon
Então chegaram a Betsaida. E trouxeram-lhe um cego, e rogaram-lhe que o tocasse. Jesus, pois, tomou o cego pela mão, e o levou para fora da aldeia; e cuspindo-lhe nos olhos, e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe: Vês alguma coisa? E, levantando ele os olhos, disse: Estou vendo os homens; porque como árvores os vejo andando. Então tomou a pôr-lhe as mãos sobre os olhos; e ele, olhando atentamente, ficou restabelecido, pois já via nitidamente todas as coisas (Mc 8.22–25).
É bastante comum vermos nos Evangelhos o nosso Salvador curando os doentes com um toque, pois ele desejava deixar marcada em nós a verdade de que as enfermidades da humanidade decaída somente poderiam ser removidas pelo contato com sua própria humanidade bendita. Contudo, ele tinha ainda outras lições a ensinar e, desse modo, adotou outros métodos de ação para curar os enfermos. Além disso, manifestar a variedade em seus métodos era por outro motivo uma atitude sábia. Se nosso Senhor tivesse realizado todos os seus milagres segundo um único modelo, os homens passariam a dar uma importância indevida à maneira pela qual ele operou o milagre e, de modo supersticioso, pensariam mais no método do que no poder divino pelo qual o milagre foi alcançado. Assim, nosso Mestre nos apresenta uma grande variedade na forma de seus milagres. Embora sempre repletos da mesma bondade e demonstrando a mesma sabedoria e o mesmo poder, ele tem o cuidado de fazer com que cada qual seja diferente um do outro, de modo que possamos contemplar a benignidade manifesta de Deus e não imaginemos que nosso divino Salvador pudesse dispor de tão poucos métodos a ponto de precisar repeti-los. Um pecado constante de nossa natureza carnal é nos concentrarmos naquilo que se pode ver e nos esquecermos do que não é visto; consequentemente, o Senhor Jesus mudava o modus operandi exterior — a maneira de realizar os milagres — com o objetivo de que ficasse claro não estar preso a qualquer método de cura e que a operação exterior não é nada em si mesma. Queria que entendêssemos que, se sua opção naquele caso fora curar por meio de um toque, também poderia curar mediante uma palavra; que, se curasse com uma palavra, poderia também dispensar a palavra e realizar a cura por sua mera vontade; que, muito embora seu olhar fosse tão eficaz quanto o toque de sua mão, mesmo sem estar visivelmente presente, sua presença invisível poderia realizar o milagre, permanecendo distante.
No exemplo do texto acima, nosso Salvador se afasta de sua prática costumeira, não apenas no método, mas também no caráter da cura. Na maioria dos milagres de nosso Salvador, a pessoa curada é restaurada imediatamente. Lemos sobre homens surdos e mudos que não apenas têm seus ouvidos e sua boca abertos, mas, o que é mais notável para alguém que jamais tinha ouvido antes um som sequer, a pessoa passa a falar normalmente, recebendo o dom da linguagem juntamente com o poder de articular sons. Em outros casos, a febre deixa o paciente no mesmo instante; a lepra é completamente curada ou o fluxo de sangue estancado naquele momento exato. Aqui, porém, o “médico amado” trabalha de maneira menos imediata, concedendo apenas parte da bênção em um primeiro momento, fazendo uma pausa e levando seu paciente a considerar quanto lhe fora dado e quanto lhe fora retido. Então, em uma segunda operação, é aperfeiçoada a boa obra.
Talvez a ação de nosso Senhor, nesse caso, tenha sido conduzida não apenas pela intenção de tomar cada um de seus milagres distinto, a fim de que os homens não pensassem que, tal como um mago, ele não tivesse senão um único modo de operar; pode também ter sido uma indicação da forma particular da doença e da enfermidade espiritual da qual ela é tipo.
Raramente Jesus curava uma doença em etapas; parecia-lhe necessário tratar do problema com um ato decisivo, eliminando-o. A expulsão de demônios, por exemplo, deveria ao que parece, ser realizada de maneira completa, ou não seria de modo algum realizada. Um leproso continuaria sendo um hanseniano se uma única mancha nele permanecesse. Mas ele mostra ser possível curar a cegueira por etapas, concedendo um vislumbre no primeiro momento e, depois, derramando a plena luz do dia sobre o globo ocular. Quem sabe, fosse necessário, em alguns casos, fazer a cura gradual, de modo que o nervo ótico pudesse se acostumar à luz.
Como o olho é o símbolo do entendimento, é bem possível, senão pode ser normal, curar o entendimento do homem em etapas. A vontade pode ser transformada de uma vez; as afeições, mudadas instantaneamente; e a maioria dos poderes da natureza humana pode experimentar rápida mudança, clara e completa. Mas ao entendimento pode ser necessário vir a ser esclarecido por meio de uma iluminação a longo prazo. O coração de pedra não deve ser amolecido gradualmente, mas, sim, transformado instantaneamente em um coração de carne; mas isso não cabe em relação ao entendimento. As faculdades de raciocínio devem ser levadas gradualmente ao equilíbrio e à ordem adequados. A alma não pode receber, em um primeiro momento, senão uma pequena percepção da verdade e, então, nisso descansar, com relativa segurança; posteriormente, poderá vir a apreender mais claramente a mente do Espírito e se manter nesse grau de luz sem maiores riscos, embora não sem perda. Isso pode ser comparável a enxergar apenas de perto, sem ver longe; e, então, a restauração definitiva do entendimento pode estar reservada para uma experiência mais avançada. É bem provável que a visão espiritual jamais nos seja concedida em absoluta perfeição até que entremos na luz para a qual o estado espiritual existe, a saber, na glória daquele lugar onde não há necessidade de luz de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus nos alumiará (Ap 22.5).
O milagre que se acha diante de nós retrata a cura progressiva do entendimento obscurecido. Esse milagre não pode ser interpretado como o retrato da restauração de um pecador obstinado que se arrependa do erro de seu caminho, nem do afastamento do devasso e depravado da imundícia de sua vida. E, sim, o retrato da alma obscurecida gradualmente iluminada pelo Espírito Santo e trazida por Jesus Cristo à luz clara e radiante do seu reino.
Nesta manhã, sentindo que existem neste local almas a serem iluminadas, com a ajuda do Espírito Santo irei interpretar o episódio; em seguida, iremos destacar os meios da cura; em terceiro lugar, vamos nos deter por alguns instantes em considerarmos o estágio da esperança; finalmente, concluiremos com uma observação a respeito da complementação da cura.
I. Em primeiro lugar, é preciso INTERPRETAR O EPISÓDIO. É uma das ocorrências surpreendentemente comuns em nossos dias e certamente bastante comum entre os novos adeptos desta congregação; pois muitos são os que aqui chegam que já foram, na parte anterior de sua vida, verdadeiros cegos espirituais, simples frequentadores formais de igrejas ou deslocados religiosos superficiais entre não conformistas.
Observe-se com atenção o caso em tela. Trata-se de uma pessoa com o entendimento obscurecido. Não se trata de um homem que pudesse ser retratado como possesso. Um possesso delira, se enfurece, é perigoso para as demais pessoas, geralmente tem de ser mantido preso ou acorrentado, vigiado e guardado, pois pode machucar a si mesmo e aos outros. O cego espiritual é perfeitamente inofensivo. Não mostra desejo algum de machucar os outros e muito provavelmente não era violento consigo mesmo. É sóbrio, calmo, honesto e bondoso e sua enfermidade espiritual pode provocar em nós pena, mas não temor. Pessoas assim, não iluminadas, quando se associam ao povo de Deus, não deliram nem se enfurecem contra os santos, mas os respeitam e amam sua companhia. Não hostilizam a cruz de Cristo; mesmo em seu pobre estado de cegueira, a amam. Não são perseguidores, difamadores ou zombadores nem caminham desesperadamente pelo caminho da impiedade. Pelo contrário, embora não possam ver as coisas de Deus, andam no caminho da moralidade de maneira admirável, de modo que, sob certos aspectos, podem até mesmo servir de exemplo para muitos que enxergam.
Também o caso diante de nós não é o de uma pessoa contaminada por doença contagiosa, como a lepra. O hanseniano era afastado da comunidade, tendo um lugar reservado para ele, por considerar-se que contaminaria todo aquele com quem entrasse em contato. Não é o que acontece com o cego espiritual que se achega ao Salvador. É cego, sim, mas não contribui de modo algum para que outros se tomem cegos também. Se estiver junto de outros cegos, não aumenta a cegueira deles e, se entrar em contato com aqueles que podem ver, não prejudica de modo algum a visão destes. Talvez os que veem possam até obter algum benefício ao se aproximar do cego espiritual, sendo levados a agradecer pela visão que detêm, ao perceber a dolorosa escuridão em que o cego está tão tristemente envolvido.
Não se trata, enfim, do caso de uma pessoa de vida libidinosa ou de atitude ou conversação suja. De modo algum, trata-se de um homem depravado, que levaria seus filhos ou outros em tomo a pecar. As pessoas sem a luz da visão espiritual de que estamos falando geralmente são amadas em nossa família, não espalham palavras injuriosas nem dão mal exemplo. Se falam de coisas espirituais, em geral causam pena, pois pouco sabem a respeito. Graças a Deus que nos abriu os olhos para vermos as maravilhas de sua Palavra.
Os cegos espirituais, de modo geral, não são, portanto, pessoas que hostilizem Deus ou vivam uma vida suja, de modo que prejudiquem a si mesmos e aos outros; nem são pessoas incapazes, sob aspecto algum, a não ser nos olhos da mente. É, então, o seu entendimento que se encontra obscurecido; mas, sob todos os outros aspectos, são pessoas que têm esperança, se é que já não sejam salvas. Nem são surdos ao evangelho, que muitos ouvem com considerável prazer e bastante atenção. É fato que, por vezes, não conseguem entendê-lo claramente, por ser muito semelhante a uma carta que recebam, assim como entender o espírito deste. Ainda assim, se o escutam, estão certamente no caminho de obter bênção maior, pois “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo”. Além disso, sob esse aspecto, não são também mudos, pois realmente oram, e sua oração, embora possa ser pouco espiritual, possui um tipo de sinceridade que não deve ser desprezada. Se frequentam um lugar de adoração desde muito tempo, não negligenciam as formas exteriores de religião. Infelizmente, ainda são espiritualmente cegos, mas se se mostram ansiosos para ouvir e orar, podemos confiar em que serão capazes de fazer estas duas coisas.
Também é preciso lembrar que os cegos espirituais, na maioria, não se revelam incapazes em outros aspectos. Sua mão não é mirrada, como no caso daquele homem que Cristo encontrou na sinagoga. Não são geralmente pessoas abatidas por séria depressão do espírito, como aquela filha de Abraão que vivia encurvada por vários anos. Mostram-se tão felizes quanto diligentes quando nos caminhos do Senhor. Se a causa de Deus precisa de assistência, quase sempre estão prontos a ajudar e, apesar da sua falta de visão espiritual, o que certamente os impede de entrar no pleno gozo das coisas divinas, encontram-se entre as pessoas mais dispostas que conhecemos a participar de qualquer boa causa. Não porque compreendam totalmente o espírito da causa nem sejam capazes de penetrar nessa e em outras questões do gênero, pois, em razão de sua cegueira natural, essas coisas lhes são um tanto estranhas. Mas neles reside alguma coisa de muito amável e esperançoso, pois demonstram estar sempre aptos a ajudar, de boa vontade, a causa de Cristo.
Existe uma razoável quantidade de pessoas desse tipo nas congregações cristãs e em várias delas um grande número de membros não passa de um pouco melhor do que isso. Na verdade, são pessoas que receberam pouco mais do que uma instrução religiosa suficiente para capacitá-las a diferenciar sua mão direita da esquerda em assuntos espirituais. Por falta de ensino doutrinário adequado, são deixadas praticamente nas trevas e, pelo fato de não lhes terem sido ditas as palavras apropriadas, permanecem como que em uma semicegueira, incapazes de desfrutar da linda paisagem que alegra os olhos do crente iluminado.
II. Vejamos agora O MÉTODO DE CURA DE NOSSO SENHOR.
Cada parte do milagre é sugestiva. A primeira coisa a ser observada é uma intervenção amigável — os amigos daquele cego o levam a Jesus. Existe tanta gente que não entende corretamente a doutrina fundamental do evangelho de Cristo e que precisa tanto da ajuda dos crentes! Essas pessoas podem até possuir algum tipo de afeição pela essência da religião, mas não conseguem compreender totalmente o que é preciso fazer para serem salvas. Ainda não alcançaram a grande verdade da substituição, que é o ponto cardeal do evangelho. Mal conhecem ou nem ouviram falar sobre o que é descansar plenamente no Senhor Jesus, em consequência da satisfação que ele deu, em nosso lugar, à justiça todo-poderosa de Deus. Podem até alimentar algum tipo de fé, mas detêm apenas uma camada fina de conhecimento, de modo que sua fé pouco ou nenhum benefício lhes traz.
Tais pessoas serão abençoadas se crentes autênticos procurarem trazê-las a um claro conhecimento do Salvador. Por que você não traz essas almas para o mesmo ministério sadio que lhe foi tão útil e instrutivo? Por que não coloca no caminho dessas pessoas o Livro sagrado que foi o meio para que os seus olhos se abrissem? Por que não coloca diante da mente delas aquele texto das Escrituras, aquela passagem da Palavra de Deus, que deu início à sua iluminação? Não seria bastante produtivo se nos engajássemos na tarefa de buscar aqueles que não são propriamente hostis ao evangelho, mas simplesmente ignorantes dele, que possuem um zelo por Deus, mas não de acordo com o conhecimento do Senhor, e que, se lhes fosse concedida a luz, encontrariam a única coisa que lhes é verdadeiramente necessária?
Do mesmo modo que devemos buscar pelos vis, pelos perdidos, corrompidos e depravados que aviltam nossos becos e vielas cheios de podridão, deveríamos, com igual determinação, procurar os esperançosos que vão a uma reunião para acabar ouvindo um sermão por vezes não evangelístico, ou que ouvem a verdadeira Palavra, mas não a entendem. Irmãos, faríamos bem se orássemos por esses e, mais ainda, se buscássemos os bons jovens e as jovens gentis, esforçando-nos para responder à aspiração de sua doce consciência: “Quem me dera pudesse saber onde encontrar Deus!” Este poderia ser, nas mãos de Deus, o primeiro passo para que recebessem a visão espiritual, caso você se importasse com esses pobres filhos da névoa e da noite.
Quando o homem cego é trazido ao Salvador, ele estabelece, primeiramente, um contato com Jesus, pois o Senhor o toma pela mão. Que dia feliz para a alma quando entra em contato pessoal com o Senhor Jesus! Quando estamos em estado de descrença, irmãos, nos assentamos na casa de Deus e para nós Cristo parece estar distante. Nós o ouvimos, sim, mas ele nos parece mais com alguém que partiu para longe, para um palácio de marfim, alguém que já não está mais entre nós. Mesmo que ele passe por nós, mesmo que se aproxime de nós, ainda suspiramos desejosos de sentir sua sombra sobre nós ou tocar a orla de suas vestes. Mas quando nossa alma começa a realmente se aproximar de Jesus, quando ele se toma objeto de nossa total atenção, quando sentimos que existe algo a ser apreendido e temos consciência dele, quando percebemos que ele não está distante e não é uma sombra impalpável, mas, sim, uma existência bastante real e que nos influencia, é nesse momento, então, que ele nos toma pela mão.
Eu sei que alguns de vocês já sentiram isso. Tem frequentemente acontecido em reuniões de culto, quando você sente que deve orar, que o sermão parece ter sido feito somente para você, que você acha até que alguém deva ter contado ao pregador alguma coisa sobre sua vida. É a verdade atingindo o alvo com toda a precisão — os próprios detalhes do sermão do pregador combinam perfeitamente com a condição da sua mente. Eu creio que isso é o bendito Senhor tomando-o pela mão. Para você, o culto foi não apenas um falar e ouvir de palavras, mas o toque misterioso de uma mão. Seus sentimentos foram impressionados, e seu coração tomou consciência de emoções particulares, originadas a partir da presença do Salvador. Evidentemente, Jesus não entra em qualquer tipo de contato físico conosco: o contato é mental e espiritual. A mente do Senhor Jesus impõe suas mãos sobre a mente dos pecadores, e, pelo Espírito Santo, ele gentilmente influencia a alma para a santidade e a verdade.
Atente agora para o próximo ato, pois ele é peculiar. O Salvador leva o homem a um lugar afastado, para fora da aldeia. Tenho observado que, quando se convertem as pessoas que eram espiritualmente cegas, não declaradamente ímpias — as que eram ignorantes, não hostis a Deus — , um dos primeiros sinais de terem se tomado cristãs é fazerem uma espécie de retiro espiritual, ao sentir sua responsabilidade. Irmãos, eu tenho sempre esperança na pessoa que começa a pensar em si mesma e se coloca sozinha diante de Deus. Existem dezenas de milhares de pessoas na Inglaterra que se consideram parte de uma nação cristã, que já nasceram membros de uma igreja e, deste modo, nunca se consideram pessoalmente responsáveis perante Deus. Pronunciam a confissão de pecados, sim, mas sempre em conjunto com toda a congregação. Cantam o Te Deum não como um cântico pessoal, mas como um louvor coral. Todavia, quando um homem é levado a se sentir como se estivesse sozinho, mesmo estando no meio da congregação, quando entende a ideia de que a verdadeira religião é individual, e não comunitária, e que a confissão dos pecados é mais adequada quando parte dos seus lábios do que dos lábios de outra pessoa, então tem início a obra da graça em sua vida.
Há esperança até mesmo para o mais cego entendimento quando a mente começa a meditar sobre sua própria condição e examina suas próprias perspectivas. Um sinal seguro de que o Senhor está trabalhando em você é se ele o levar para fora da aldeia, se você estiver se esquecendo de todos os outros e pensando somente em si mesmo agora. Não considere isso como sendo egoísmo — é tão somente a mais elevada lei dos mandamentos de nossa natureza. Todo homem que esteja se afogando deve pensar em si mesmo, e, já que é um egoísmo justificável procurar preservar a própria vida, muito mais é buscar escapar da ruína eterna. Quando sua salvação for então completa, você não verá mais a necessidade de pensar apenas em si, mas passara a cuidar da alma dos outros. Por ora, no entanto, é da maior sabedoria pensar em si mesmo, colocar-se pessoalmente diante de Deus e olhar para o Salvador de modo que possa ganhar a vida eterna. “Jesus, pois, tomou o cego pela mão, e o levou para fora da aldeia.”
A atitude de Jesus a seguir foi bastante estranha. Ele usou de um meio que se poderia até considerar como indigno: simplesmente, cuspiu nos olhos daquele homem. Não só desta vez, mas também em outras ocasiões, o Salvador usou sua saliva como meio de cura. Supõe-se que isso possa ter acontecido por ser essa prática recomendada pelos médicos da Antiguidade; mas não posso imaginar que a opinião daquelas pessoas pudesse ter algum peso sobre o Senhor que operava maravilhas. Parece-me, sim, que o uso da saliva fazia uma ligação entre a abertura dos olhos do cego e a boca do Salvador, ou seja, por meio desse gesto representativo a saliva conectava a iluminação do entendimento com a verdade que Cristo professava. Evidentemente que a visão espiritual vem por meio da verdade espiritual e os olhos do entendimento seriam abertos pela doutrina que Cristo ensinava. Todavia, a reação natural que costumamos ter ao cuspe é o nojo — e isso foi intencionalmente usado pelo Salvador, exatamente com esse propósito. Não foi mais que apenas um cuspe, mas um cuspe saído da boca do Salvador.
Sendo assim, perceba, meu amigo, que é bem possível que Deus venha a abençoar você por meio da mesma verdade que você um dia desprezou. Também não será de surpreender se ele o abençoar por meio daquela pessoa contra quem você falou de maneira amarga. Sempre agradou a Deus conceder aos seus servos ministros uma graciosa forma de revanche. Muitas e muitas vezes, os mais aguerridos e furiosos inimigos dos próprios servos de Deus receberam as maiores bênçãos das mãos daqueles servos a quem mais desprezavam. Você pode chamar isso de “cuspir”: é exatamente isso que vai abrir os seus olhos. Se você acaso disse alguma vez que “o evangelho é uma coisa tola”, é por meio desse lugar-comum em matéria de injúria que você receberá vida eterna. Se, com grande desdém, declarou que tal pregador falava com estilo vulgar e grosseiro, você um dia ainda irá bendizer essa vulgaridade e ficará muito feliz em receber, por meio de uma palavra aparentemente grosseira, a pura verdade que seu Mestre ordena que aquela pessoa lhe fale. Acho que muitos de nós precisaríamos perceber isso em nossa conversão. O Senhor castiga o nosso orgulho ao nos dizer que aquelas pobres pessoas a quem tratamos com tanta aspereza se transformarão em uma bênção para nós e que o servo contra o qual você tinha maior preconceito será a pessoa que justamente irá conduzi-lo à mais perfeita paz.
Fico surpreso ao ver que isso e muito mais estava na mente do nosso Salvador quando ele decidiu cuspir nos olhos daquele homem. Não usou de pós trazidos por mercadores, nem mirra nem incenso, nenhuma droga cara; tão somente o simples cuspe de seus lábios. Meu caro ouvinte, se você deseja ver as coisas profundas de Deus, não será por meio dos antigos filósofos nem de profundos pensadores de nossos dias, mas será por meio daquele que o ensine dizendo “confie em Cristo e viva” que você será instruído sobre a melhor filosofia, mais do que o seria pelos filósofos. Alguém que lhe diga que nele, no Senhor Jesus, habitam os tesouros da sabedoria e do conhecimento, dirá a você, em uma simples declaração, mais do que tudo aquilo que poderia aprender por meio de Sócrates e Platão, mesmo que estes pudessem se levantar dos mortos, e ter um grande mestre, aos pés do qual, como seguidor, se colocasse. Somente Jesus Cristo pode abrir os seus olhos, e ele o fará, se necessário for, até usando do simples cuspir de sua boca.
Você também perceberá que, quando Jesus cospe nos olhos do cego, conforme nos diz o relato, coloca as mãos sobre ele. Teria ele feito isso como uma forma de bênção celestial? Ao impor suas mãos, teria Jesus concedido ao homem sua bênção, ordenando que o fluxo da virtude de sua própria pessoa passasse para ele? Creio que sim. Assim sendo, irmãos, não é o cuspir; não é levar o homem para longe da multidão; não é o ministério; não é a pregação da Palavra; não é a consideração do ouvinte, o que irá fazer alcançar a bênção espiritual. É a unção daquele mesmo que morreu pelos pecadores o que confere a bênção celestial a todos nós. Ele é exaltado nas alturas para poder conceder arrependimento e remissão do pecado. É por meio do mesmo Jesus, desprezado e rejeitado pelos homens — e unicamente por meio dele — que a bênção, como a visão dada ao cego, será dada, sem preço, aos filhos dos homens. Devemos fazer uso dos meios da graça, jamais desprezá-los ou deixar de confiar neles. Devemos ficar a sós, pois o retirar-se é também uma grande bênção. Mas, acima de tudo, devemos olhar para o Senhor e doador de toda boa dádiva; caso contrário, a cuspida irá ser limpa com certo nojo e o estar sozinho simplesmente fará que aquele que é cego erre o caminho mais facilmente e vagueie nas trevas mais profundas com menos simpatia e ajuda.
Este episódio é bem a fotografia de alguns de nós presentes aqui. Creio que existam pessoas aqui que desde a sua juventude têm frequentado locais de adoração sem a menor percepção da vida espiritual e que teriam continuado a fazer isso se o Senhor não se agradasse de fazer uso de amigos seus, bem-aventurados amigos cristãos, que as convidaram: “Venha comigo; acho que podemos dizer-lhe alguma coisa que você ainda não sabe”. Mediante oração e ensinamento, esses amigos fizeram que você tivesse contato com Jesus. O Senhor tocou você, influenciou sua mente, fez que você pensasse, fez que visse que existem mais coisas na religião do que simplesmente atos exteriores, que sentisse que ir à igreja não era tudo. Sim, realmente não era tudo, que faltava você aprender o segredo, o verdadeiro segredo, da vida eterna. Foi por meio de tudo isso que você começou a sentir que existe poder nesse evangelho que um dia você até pode ter desprezado. Algo de que você até zombou, como algumas empolgadas pregações avivalistas, representa agora, no entanto, para você, o próprio evangelho de sua salvação. Agradeçamos a Deus por isso, pois é por meio de coisas desprezíveis assim que os nossos olhos são abertos.
III. Chegamos agora ao terceiro ponto. Vamos fazer uma pausa em um MOMENTO AUSPICIOSO. O Senhor concedera ao globo ocular daquele homem o poder de ver, mas não removera completamente a película que mantinha opaca a luz vinda de fora. Ouça o que diz o homem. Jesus pergunta: Vês alguma coisa? Ele olha para cima, e a primeira e alegre frase que diz é: Estou vendo. Que bênção! Estou vendo! Alguns de vocês, queridos amigos, poderão também dizer: “Um dia, eu fui cego, mas agora vejo. Sim, Senhor, não estou mais na escuridão total. Não vejo ainda quanto deveria ou quanto esperava ver, mas vejo. Existem muitas, muitas coisas das quais eu não sabia nada e, agora, sei pelo menos alguma coisa sobre elas. Nem mesmo o próprio inimigo vai me fazer duvidar de que estou realmente enxergando. Eu sei que vejo. Eu me sentia satisfeito com as formas exteriores — se eu tivesse hinos para cantar, orações para fazer e todas as demais coisas externas, isso me bastava, eu me sentia satisfeito. Mas agora, embora eu sinta que ainda não posso ver da maneira que gostaria, já posso ver realmente. Se não posso ver a luz total, há pelo menos uma penumbra visível. Não posso ver a salvação, mas sou capaz de enxergar minha própria ruína. Eu vejo, de fato, meus próprios desejos e necessidades; se eu não vir nada mais, posso, pelo menos, enxergar essas coisas”.
Na verdade, se uma pessoa pode ver alguma coisa, não importa o quê, certamente tem visão. Se vê um objeto, se ele é bonito ou feio não vem ao caso: o simples fato de ver é prova suficiente de que há visão em seus olhos. Do mesmo modo, a percepção espiritual de alguma coisa é prova de que você tem vida espiritual, quer essa percepção o faça lamentar, quer o faça regozijar; quer ela o quebrante, quer anime seu coração. Se você realmente vê alguma coisa, então certamente tem o poder da visão. Isto é bastante claro, não?
Mas ouça mais uma vez o que diz o homem. Ele diz: “Estou vendo os homens”. Isto é ainda melhor. Claro que aquele pobre homem já fora, outrora, capaz de ver, caso contrário não conheceria a forma de um homem. “Estou vendo os homens”, diz ele. Existem alguns aqui com visão suficiente para distinguir entre uma coisa e outra, assim como diferenciar isso daquilo. Embora você possa, espiritualmente, ter sido cego como um morcego, ninguém pode fazer você acreditar que regeneração pelo batismo é a mesma coisa que regeneração pela Palavra de Deus. Você pode ver a diferença entre essas duas coisas em todos os aspectos. É de supor que qualquer pessoa possa ver essa diferença, mas muitas não podem. Você é capaz de distinguir entre uma adoração simplesmente formal e exterior e uma adoração espiritual — você tem condições de ver isso. Vê também o suficiente para saber que existe um Salvador; que precisa de um Salvador; que o caminho para a salvação é a fé em Cristo; que a salvação que Jesus nos dá realmente nos livra do pecado e que, em segurança, leva à glória eterna aqueles que a recebem. Assim, fica claro que você pode ver alguma coisa e rapidamente saber o que seja.
No entanto, ouça bem o cego. Aparece aqui, em seguida, uma palavra que complica as coisas: “Estou vendo os homens; porque como árvores os vejo andando”. Ele não podia dizer se eram homens ou árvores, a não ser pelo fato de que estavam andando; e, como sabia que árvores não andam, não poderiam ser árvores. O que via, na verdade, eram manchas confusas diante de seus olhos. Pelo movimento, sabia que deveriam ser homens, mas, por meio de sua simples visão escassa, não podia dizer com exatidão se eram realmente homens. Muitas almas preciosas se encontram em compasso de espera, nesse estágio auspicioso mas desconfortável. Podem ver. Glória a Deus por isso! Jamais voltarão a ser completamente cegas outra vez. Se podem ver o homem Jesus e o madeiro, a árvore na qual morreu, podem até mesmo tornar as duas coisas para si um único objeto, pois Cristo e sua cruz são uma única coisa. Olhos que não podem ver Jesus claramente podem vê-lo, todavia, vagamente; mas mesmo uma visão ainda imperfeita pode salvar sua alma.
Observe-se que a visão deste homem estava ainda bastante confusa: ele não podia fazer a diferença entre um homem e uma árvore. Assim também é a primeira visão dada a muitas pessoas espiritualmente cegas. Não conseguem distinguir entre uma doutrina e outra. Frequentemente, confundem em sua mente a obra do Espírito e a obra do Salvador. Possuem a justificação, possuem santificação, mas é bem provável que não saibam discerni-las. Receberam justiça do coração, concedida, e justiça de Cristo, que lhes foi imputada, mas não conseguem fazer distinção entre justiça concedida e imputada. Possuem ambas, mas não conseguem discerni-las — pelo menos a ponto de serem capazes de dar sua definição ou explicá-las. Podem ver — mas não podem ver como deveriam. Veem homens como árvores que andam.
A visão dessas pessoas, tal como a do cego, além de indistinta, é bastante exagerada. Um homem não é tão grande quanto uma árvore, mas as pessoas, em sua visão, aumentam a estatura humana ao equipará-la à de uma árvore. Assim, exageram na doutrina. Se recebem a doutrina da eleição, não se contentam em ir até onde as Escrituras vão; fazem uma árvore de um homem, introduzindo a doutrina da condenação. Se começam a entender um preceito como o batismo, ou qualquer que seja, o exageram em suas proporções e o transformam em uma espécie de doutrina genérica. Há pessoas que escolhem e dão preferência a determinada ideia, enquanto outras escolhem e preferem outra, e isso tudo é exatamente confundir um homem com uma árvore. Seria muito bom se essas pessoas pudessem ver doutrina e preceitos como um todo, mas seria melhor ainda se pudessem observar esses aspectos da fé como realmente são, e não como lhes parece.
Esse exagero geralmente leva ao temor, pois, se eu vejo um homem caminhando na minha direção que seja tão alto quanto uma árvore, fico naturalmente amedrontado de que caia sobre mim e, por isso, saio do caminho. Muitas pessoas têm medo das doutrinas de Deus, porque, de acordo com o pensamento de alguns, são tão altas quanto árvores. Elas, porém, não são assim tão altas. Deus as criou com o tamanho certo; a cegueira das pessoas exagera seu tamanho e faz que sejam vistas como mais terríveis e altas do que deveriam ser. As pessoas têm medo de ler livros que falem sobre certas verdades e fogem amedrontadas de todos os homens que as pregam, simplesmente porque não podem ver essas doutrinas sob a luz correta e ficam alarmadas diante da própria visão confusa que delas têm.
Juntamente com esse exagero e esse temor, existe na vida dessas pessoas uma perda total da alegria, uma vez que a alegria vem pelo fato de sermos capazes de perceber a beleza e a amabilidade dos seres e das coisas. Afinal, a parte mais nobre de um homem é o seu semblante. Gostamos de destacar as melhores características das pessoas — aquela face gentil, aquela expressão terna, aquele olhar vencedor, aquele sorriso radiante, aquele brilho expressivo de benevolência em sua face, aquela fronte altaneira, gostamos de ver tudo isso. Mas aquele pobre cego não podia ver nada disso; ele mal podia diferenciar um homem de uma árvore, não podia descobrir aquelas linhas mais suaves, criadas pelo grande Mestre, que formam a verdadeira beleza. A única coisa que ele podia dizer era serem “homens”. Se algum deles era um homem negro como a noite, outro claro como a manhã, ele não saberia e não podia dizer. Se um deles ou outro tinha um aspecto rabugento ou amargo, bondoso e gentil, não podia distinguir.
Assim é também com essas pessoas que obtêm somente alguma visão espiritual. Não conseguem ver os detalhes das doutrinas. Vocês sabem, meus irmãos, que é nos detalhes que reside a verdadeira beleza. Se confio em Jesus como meu Salvador, serei salvo, mas a alegria da fé vem por conhecê-lo em pessoa, por seus atos, sua obra, seu passado, presente e futuro. Percebemos a verdadeira beleza do Senhor ao estudá-lo, ao observá-lo com cuidado e atenção. O mesmo acontece com as doutrinas. O total de uma sã doutrina, o grosso dela, é bendito, mas é quando chegamos a seus detalhes que alcançamos a mais pura satisfação. “Sim”, diz a pessoa grosseira ao olhar para um quadro refinado, como, por exemplo, o famoso O touro, do pintor holandês Paulus Potter, “certamente é uma pintura extraordinária” e, então, vai embora. Mas uma pessoa sensível, um artista, senta-se diante do quadro e estuda seus detalhes. Para essa pessoa, existe beleza em cada toque, em cada sombra, que entende e aprecia. Muitos são os crentes que possuem luz suficiente para conhecer a fé em seus traços gerais, mas não observam o acabamento, as minúcias, nos quais um filho de Deus espiritualmente instruído poderá sempre encontrar o mais doce conforto. Tais crentes podem ver, sim, mas veem os homens “como árvores […] andando”.
Embora saiba que a maioria de vocês, meus irmãos, foi muito além desse estágio, sei também que existem centenas de pessoas no povo de Deus que ainda permanecem nele. Consequentemente, quando Satanás se lhes impõe, surgem, com elas, seitas, grupos e teorias. Se um bom número de pessoas dotadas de bons olhos, reunidas, vê um mesmo objeto, todos serão praticamente concordes na descrição do que veem. Mas se for um número igual de pessoas com olhos tão fracos a ponto de mal poderem distinguir um homem de uma árvore, irão certamente discordar, fazer uma grande confusão e, muito provavelmente, terminarão discutindo. “E um homem”, afirmará uma delas, “ele caminha”. “E uma árvore”, afirmará outra, “é alto demais para um homem”. Quando homens quase cegos espiritualmente se tornam cada vez mais obstinados e desprezam seus mestres, não se permitindo aprender aquilo que o Espírito Santo lhes deseja ensinar, passam a tomar sua ignorância por conhecimento e talvez acabem levando consigo outros quase cegos para o fosso. Mesmo que uma santa modéstia impeça esse pernicioso resultado, ainda assim é de lamentar esses quase cegos, que deixam os homens amargurados, quando deveriam se regozijar, fazendo que murmurem diante da revelação da verdade, que, se compreendida corretamente, encheria a boca deles de louvor por todo um dia. Muitos, por exemplo, são os que ficam perturbados por causa da doutrina da eleição. Se existe uma doutrina na Bíblia que deveria fazer os crentes cantarem louvores noite e dia, é justamente a doutrina do amor que elege e da graça que distingue. Algumas pessoas, no entanto, temem isso ou aquilo nas doutrinas cristãs, ao passo que, se entendessem a verdade, correriam para os seus braços, em vez de fugir delas como de um inimigo.
Tendo apresentado este retrato do homem em seu estado de transição, encerraremos destacando a COMPLEMENTAÇÃO FINAL DA CURA.
Irmãos, sejamos gratos por qualquer tipo de luz. Sem a graça de Deus, não poderíamos ter nem sequer um raio de luz que fosse. Um simples raio de luz é mais até do que merecemos. Se fôssemos presos na negritude das trevas para sempre, do que poderíamos reclamar? Uma vez que fechamos nossos olhos para Deus, não merecemos ser condenados às trevas eternas? Seja agradecido, portanto, pelo mínimo vislumbre de luz. Mas não valorize demais aquilo que você tem, a ponto de não desejar ter mais. Um homem estará tristemente cego se não desejar ter mais luz. É um mau sinal de saúde não ter o desejo de crescer. Se ficarmos satisfeitos por conhecer toda a verdade a ponto de não querermos aprender mais nada, é bem provável que estejamos precisando começar de novo. Uma das primeiras lições da escola da sabedoria é reconhecermos que somos por natureza tolos e que se toma cada vez mais sábio o homem que tenha cada vez mais consciência de sua própria deficiência e ignorância. Contudo, se o Senhor Jesus Cristo faz que um homem passe a ver um pouco e deseje ver mais, não o deixará até que seja levado a conhecer toda a verdade.
Observemos que, para completar a cura, o Salvador tocou mais uma vez seu paciente. A renovação do contato que você tem com o Salvador constitui o meio de alcançar seu aperfeiçoamento, tal como foi o seu primeiro contato para ser iluminado. Mantenha-se junto a Cristo, em íntima comunhão com sua bendita pessoa, em total dependência de seu mérito. Estude a pessoa de Jesus, deseje intensamente que ele tenha comunhão com você e olhe para ele com os seus próprios olhos da fé, não com os olhos de outra pessoa — serão estes os meios pelos quais ele lhe dará uma luz mais clara. O toque divino faz tudo isso.
Quando os olhos daquele homem foram plenamente abertos, certamente que a primeira pessoa que ele viu foi Jesus, pois havia sido afastado da multidão e só podia ver os outros homens a distância. Bendita visão essa, absorvendo aquele rosto, percebendo as belezas daquele que ama nossa alma como ninguém mais. Oh, que alegria! Se não pudéssemos ver a face de Jesus, deveríamos nos conformar, então, em termos cegueira eterna! Mas, se o vemos, oh, que deleite celestial sermos resgatados da cegueira que nos impedia de vê-lo! Ore para que você, crente, acima de todas as coisas, possa conhecê-lo. Considere a doutrina cristã uma coisa preciosa, simplesmente pelo fato de ela ser o trono no qual ele se assenta. Pense nos preceitos da lei, mas sem deixar que sejam uma pedra de legalismo que o mantenha na tumba; pense neles como são ilustrativos e vividos na vida de Jesus. Não dê maior importância à sua própria experiência se ela não apontar para Cristo. Considere que você só cresce quando cresce nele. “Crescei na graça”, diz a Palavra, acrescentando: …e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pe 3.18). “Cresçamos”, diz ainda, e o que mais diz? …em tudo naquele que é a cabeça, Cristo (Ef 4.15). Peça visão, fazendo sua oração assim: “Senhor, quero ver Jesus”. Ore pedindo visão, mas visão do Rei em sua beleza, e que, além de tudo, você possa também, um dia, ver a terra distante. Você estará se aproximando da total clareza da visão quando puder ver apenas Jesus; e estará saindo da penumbra rumo ao brilho radiante do dia quando, em vez de ver homens como árvores, puder contemplar o Salvador. Você estará superando então, definitivamente, aquela sua primeira visão.
Lemos que, para ver, o paciente levantou os olhos. Se desejamos ver, não devemos olhar para baixo: nenhuma luz brilha a partir da terra, obscura. Nem devemos olhar para dentro de nós: é uma caverna sombria, cheia do que é ruim. Temos de levantar os olhos e olhar para cima. Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto (Tg 1.17). Devemos, pois, buscá-los olhando para cima. Meditando em Jesus e nele descansando, devemos olhar para cima, na direção do nosso Deus. Nossa alma deverá buscar a perfeição do nosso Senhor e não ficar sonhando com a perfeição própria; deve refletir a grandeza de Deus e não ficar fantasiando sobre a própria grandeza. Temos de olhar para cima — não para aqueles que são servos como nós nem para os atos exteriores de adoração; tão somente para o próprio Deus. Levantemos os olhos, olhemos para cima e, ao fazê-lo, encontraremos a luz.
Lemos que, finalmente, o homem “ficou restabelecido, pois já via nitidamente todas as coisas”. Sim, quando o grande médico manda seu paciente para casa, ele pode descansar seguro de que sua cura foi plenamente realizada. Esse paciente, agora, estava totalmente bem e curado, no grau superlativo dessas palavras. Ele via todos os homens e com clareza. Que este seja o final feliz dos muitos semi-iluminados aqui presentes!
Não fique satisfeito, meu querido amigo, em ser simplesmente salvo. Procure saber como você é salvo, por que é salvo, o método pelo qual é salvo. É numa rocha que você se firma, eu sei, mas pense nas seguintes perguntas: Como foi colocado sobre essa rocha? Pelo amor de quem você chegou lá? Por que esse amor foi direcionado a você? Por Deus, eu gostaria que todos os membros desta igreja estivessem não apenas em Cristo Jesus, mas que o entendessem e soubessem, com a segurança do entendimento, com que finalidade chegaram até ele. Que vocês estejam sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês (1Pe 3.15).
Lembre-se também, meu amigo, que existem muitas diferenças profundas nas Escrituras, que se você conhecer e se lembrar delas poderá evitar um mundo de problemas. Tente entender a diferença entre a velha e a nova naturezas. Jamais espere que a velha natureza vá melhorando até se transformar na nova, pois isso nunca irá acontecer. A velha natureza não pode fazer outra coisa senão pecar, e a nova natureza jamais poderá pecar. São dois princípios distintos; nunca as confunda. Não veja homens como árvores. Não confunda santificação com justificação. Lembre-se que no momento em que você aceita Cristo é justificado tão completamente quanto o será no céu; já a santificação é obra gradual, realizada dia após dia por Deus Espírito Santo. Faça a distinção entre a grande verdade de que a salvação é somente de Deus e a grande mentira de que os homens não devem ser responsabilizados por estarem perdidos. Esteja certo de que a salvação é do Senhor, mas jamais condene Deus pela perdição. Não há problema se por acaso disserem que você é adepto do calvinismo, mas rejeite o antinomianismo.¹ * Por outro lado, embora você creia na responsabilidade humana, nunca caia no erro de supor que o homem sempre se volta para Deus com base em seu livre-arbítrio. Existe uma linha tênue entre os dois erros; peça a graça para saber a distinção entre os dois. Peça a Deus para não cair em um redemoinho e não ser lançado contra um rochedo; para não ser escravo nem de um sistema nem de outro. Nunca diga em relação a um texto das Escrituras: “Assim não dá; eu não posso suportar isso”; nem com relação a outro: “Eu só acredito em você, somente em você”. Ame toda a Palavra de Deus, tenha discernimento de toda a verdade revelada. Assim como você recebeu a Palavra de Deus não como um conjunto de partes discordantes, mas como um todo, procure compreender a verdade como ela é em Jesus, em toda a sua solidez e unidade. Conclamo você que já recebeu a visão que o capacita a ver todas as coisas a se ajoelhar agora e clamar ao grande doador da visão:
“O mestre, prossegue em tua obra. Tira toda película, remove toda catarata e, mesmo que se tome preciso sofrer para que todos os meus preconceitos e males sejam arrancados, para que sejam clareados os meus olhos, faze tudo isso, Senhor, até que eu possa enxergar na radiante luz do Espírito Santo e me seja permitido entrar pelos portões da cidade santa, onde meus olhos poderão te ver face a face”.
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¹ * [NT] Antinomianismo — diz-se do pensamento doutrinário que, em nome da supremacia da fé e da graça, preconiza que os salvos em Cristo não precisam seguir nem dar importância à lei mosaica.
Charles H. Spurgeon. Milagres e Parábolas de Nosso Senhor: A Obra e o Ensino de Jesus em 173 Sermões Selecionados. São Paulo: Ed. Hagnos, 2016, pp. 29–38.