Soberania e Responsabilidade

Alguns excertos de Vincent Cheung

Luan Tavares
8 min readSep 9, 2021

Outra objeção contra a doutrina bíblica da soberania divina é que ela parece contradizer a responsabilidade humana. O pressuposto é que a responsabilidade humana pressupõe a liberdade humana. Mas se Deus exerce controle completo sobre todas as decisões e ações humanas, então o homem não é livre e, portanto, a soberania divina e a responsabilidade humana parecem se contradizer. E isso é um problema porque se insiste que a responsabilidade humana deve ser mantida.

A primeira definição de “responsável” no Webster’s New World College Dictionary diz: “esperado ou obrigado a prestar contas (por algo, a alguém); passível de resposta; aquele que presta contas”. Ora, sem qualquer consideração sobre se o homem é livre, ele certamente é “esperado ou obrigado a prestar contas” por seus pensamentos e ações a Deus. A Bíblia diz: “Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mau” (Eclesiastes 12:14). Deus recompensará os justos e punirá os ímpios; portanto, a responsabilidade humana é estabelecida à parte de qualquer discussão sobre a liberdade humana.

O homem é responsável precisamente porque Deus é soberano, porque ser responsável significa dever prestar contas. Significa que uma pessoa deve explicar e justificar seus pensamentos e ações, e que será recompensada ou punida de acordo com um certo padrão de certo e errado. A responsabilidade moral tem a ver com se Deus decidiu julgar o homem e se Deus tem o poder e a autoridade para fazer cumprir sua decisão. É totalmente dependente da soberania divina e não tem nada a ver com a liberdade humana. O homem é responsável porque Deus recompensará a obediência e punirá a rebelião, mas isso não sugere que o homem seja livre para escolher entre a obediência e a rebelião.

Romanos 8:7 diz: “A mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à Lei de Deus, nem pode fazê-lo”. O homem é responsável por seus pecados não porque ele é livre ou não pode se abster — este versículo diz que ele não pode se abster do pecado. Em vez disso, o homem é responsável porque Deus decidiu julgá-lo por seus pecados. Portanto, a responsabilidade humana não pressupõe a liberdade humana, mas pressupõe a soberania divina. Portanto, a soberania divina de fato contradiz a liberdade humana, mas só ela estabelece a responsabilidade humana.

[…]

Estabelecemos que as criaturas não têm livre-arbítrio e que a responsabilidade humana não tem relação direta com a liberdade humana. Deus controla todas as coisas, incluindo os pensamentos e ações do homem, mas o homem ainda é responsável por seus pensamentos e ações precisamente porque Deus o considera soberanamente responsável.

Responsabilidade pressupõe prestação de contas, mas responsabilidade não pressupõe capacidade ou liberdade. Em vez disso, a responsabilidade pressupõe alguém que exige prestação de contas. Visto que Deus exige prestação de contas — visto que ele recompensará a justiça e punirá a impiedade — o homem é responsável. Visto que Deus é soberano, ele decide o que quer decidir, e se o homem tem livre-arbítrio ou não, não tem lugar lógico na discussão.

Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 183–184, 187.

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Se Deus é soberano, então o homem não pode ser livre — isto é, não pode ser livre de Deus, do seu poder e controle. No entanto, isso não contradiz o ensino da Bíblia de que o homem é moralmente responsável por seus pensamentos e ações. Uma confusão comum é que liberdade e responsabilidade são a mesma coisa, de modo que às vezes são até usadas indistintamente na literatura teológica e filosófica, ou que uma não pode existir sem a outra.

A premissa assumida é que responsabilidade pressupõe liberdade, e isso leva à conclusão de que se o homem não é livre, ele não é responsável. No entanto, essa premissa é falsa, porque por definição, responsabilidade não tem nada a ver com liberdade, mas sim se alguém deve prestar contas. A primeira definição do dicionário para “responsável” é “passível de ser chamado a responder”. Visto que Deus declarou suas leis morais à humanidade e declarou julgamento sobre aqueles que desobedecerem, isso significa que o homem é responsável, porque Deus exigirá que ele preste contas. A questão da liberdade não entra em discussão.

Embora os calvinistas e os teólogos reformados afirmem apoiar o que a Bíblia ensina sobre a soberania divina, muitos deles também afirmam esta suposição antibíblica e irracional de que a responsabilidade moral pressupõe a liberdade humana. Eles concordam com os hereges que, para os mandamentos de Deus serem significativos, o homem deve ser livre para obedecê-los. Assim, quando se trata da doutrina da predestinação, eles encontram contradições, antinomias e paradoxos (ou como quer que os chamem), e então os apresentam como parte do ensino da Bíblia, quando a Bíblia está contradizendo os teólogos, e não a si mesma.

Vincent Cheung. Commentary on Ephesians (2014), pp. 14–15.

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Observamos que a liberdade e a responsabilidade humana não têm nenhuma relação necessária entre si, e que o homem é responsável porque Deus decidiu julgá-lo em relação à lei moral. A liberdade não entra na discussão de forma alguma. Em seguida, ressaltamos que a soberania divina não é compatível com a liberdade humana, se a liberdade a que nos referimos é a liberdade de Deus. Claramente, se Deus é soberano sobre o homem, então o homem não é livre de Deus e, portanto, o homem não tem liberdade. Mas se a liberdade a que nos referimos é a liberdade de algo ou outra pessoa que não seja Deus, então é irrelevante quando o assunto é a soberania de Deus. É enganoso até mesmo mencioná-la.

Se a afirmação é que a soberania divina é compatível com a escolha humana, então é novamente irrelevante e enganosa. Primeiro, se dissermos que a soberania de Deus está aquém do controle da escolha humana, então essa soberania não é absoluta, então é claro que um Deus poderoso, mas não verdadeiramente soberano, é compatível com a escolha humana, visto que o homem acaba sendo livre de Deus afinal. Mas se dissermos que a soberania de Deus é absoluta, então ela também determina a escolha humana. Então, dizer que a soberania divina é compatível com uma pessoa que faz uma escolha é como dizer que meu ato de quebrar um lápis ao meio é compatível com o lápis quebrando ao meio. É claro que é — fui eu quem fez isso! A diferença é que Deus tem mais controle sobre a vontade de um homem do que eu tenho sobre um lápis.

Portanto, é claro que a soberania divina absoluta é “compatível” com a escolha humana, visto que é Deus quem ativamente causa cada escolha humana. E voltamos à constatação de que não adianta criar tantos problemas sobre “compatibilidade”, uma vez que é um ponto irrelevante e enganoso. O homem ainda não é livre e ainda é responsável. E ele é responsável porque não é livre. Portanto, a energia divina vem de Deus, o trabalho humano vem de Deus (Filipenses 2:12–13), e apenas para completar o ensino, o resultado também vem de Deus — “efetua o crescimento dado por Deus” (2:19; também 1 Coríntios 3:7).

Vincent Cheung. Commentary on Colossians (2008), p. 80.

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Alega-se que há uma tensão entre a soberania divina e a liberdade humana. Mas não há tensão alguma, porque não existe liberdade humana — a soberania divina é completa e absoluta. A Bíblia não ensina a soberania divina e a liberdade humana, mas ensina a soberania divina e a responsabilidade humana. A falsa doutrina surge quando as pessoas confundem responsabilidade com liberdade, ou quando assumem que responsabilidade pressupõe liberdade, de modo que os seres humanos são responsáveis ​​apenas se forem livres.

No entanto, não há uma relação necessária entre responsabilidade e liberdade — a relação é puramente imaginária e totalmente antibíblica e irracional. Por definição, uma pessoa é responsável se prestar contas a alguém por seus pensamentos e ações. Portanto, os seres humanos são responsáveis ​​perante Deus se Deus tiver decidido e decretado que eles prestarão contas por seus pensamentos e ações. Deus realmente assim decidiu e decretou; portanto, os seres humanos são responsáveis ​​perante Deus por seus pensamentos e ações.

A liberdade humana não tem nenhum lugar lógico na discussão. De fato, o exposto acima mostra que a responsabilidade humana se estabelece, na realidade, unicamente na soberania divina, no que Deus decidiu e decretou, de modo que somos responsáveis ​​precisamente porque Deus é soberano e nós não somos livres. Se nossos pensamentos e ações são controlados por Deus, novamente, é questão de liberdade humana, e não encontra nenhum lugar lógico para ser introduzido na discussão.

Essa visão bíblica e racional foi falsamente acusada de minar a responsabilidade humana, mas o inverso é verdadeiro. Nossos oponentes afirmam defender a responsabilidade, mas o fazem, pelo menos em parte, baseando a responsabilidade na liberdade. No entanto, não temos conhecimento de nenhum cristão professo que atribua ao homem liberdade total, no sentido de que o homem é tão livre e capaz quanto Deus, e como se ele tivesse liberdade ilimitada e capacidade de criar, atravessar, transformar e assim por diante. É claro que uma pessoa que defende tal visão não seria capaz de defendê-la, e nem seria um cristão. Em vez disso, mesmo em sua falsa doutrina, a liberdade na qual essa responsabilidade se baseia é pequena e relativa, não completa e absoluta.

Por outro lado, nossa visão coloca a responsabilidade humana inteiramente sobre a soberania divina — isto é, sobre a decisão soberana de Deus de julgar, sobre sua onisciência para saber e sobre sua onipotência para executar sua vontade. Portanto, em nossa visão, os seres humanos são tão responsáveis ​​quanto Deus é soberano. Assim como Deus é totalmente soberano sobre o homem, o homem é totalmente responsável perante ele. Não pode haver uma visão mais forte da responsabilidade humana do que esta. Visto que não há espaço para Deus ser mais soberano, não há espaço para o homem ser mais responsável. Por necessidade, todos que discordam disso têm uma visão mais fraca da responsabilidade humana.

Mas nossos oponentes minam tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana. Eles pensam que há “tensão” na Bíblia, e que devemos afirmar os dois lados dessa tensão, embora eles finjam reverência alegando que não há contradição real. A verdadeira tensão, entretanto, é entre a falsa doutrina deles e o ensino bíblico. Eles discordam de Deus e culpam a Bíblia. E eles acusam aqueles que aderem à Escritura como heterodoxos, mas isso só é verdade se eles definirem a ortodoxia pela sua própria opinião e não pela revelação divina. A solução adequada é eles exibirem arrependimento sincero e passarem pela renovação da mente.

Vincent Cheung. Commentary on First Peter (2006), pp. 9–10.

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A responsabilidade moral (ou prestação de contas) tem a ver com se Deus decidiu nos julgar; não tem relação direta sobre se somos livres. De fato, se fôssemos livres de Deus, mas não julgados por Deus, então ainda não seríamos moralmente responsáveis ​​(ou passivos a prestar contas). Em outras palavras, a responsabilidade moral não pressupõe a liberdade humana, mas pressupõe a soberania divina. Somos responsáveis ​​não porque somos livres, mas somos responsáveis ​​precisamente porque não somos livres.

Vincent Cheung. The Author of Sin (2014), p. 13.

© Vincent Cheung. Traduzido e compilado por Luan Tavares.

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“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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