Retaliação (Mateus 5:38–42)

Extraído de Vincent Cheung, The Sermon on the Mount (2012).

Luan Tavares
10 min readJun 10, 2021

“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E, se alguém quiser processá-lo e tirar de você a túnica, deixe que leve também a capa. Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas. Dê a quem pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir algo emprestado.”

Essa passagem sobre retaliação pode ser difícil por dois motivos. Primeiro, alguém pode achar difícil entendê-la só porque não quer aceitar o que ela significa ou parece significar. Mas nossas preferências e reservas não devem determinar como entendemos uma passagem. Segundo, é difícil porque pode ser facilmente mal interpretada se deixarmos de levar em conta o contexto. Embora devamos sempre observar o contexto ao ler qualquer coisa, o entendimento correto desta passagem depende do contexto mais do que de muitas outras passagens.

Pegue o mandamento contra o assassinato como exemplo. Muitas vezes as pessoas isolam a declaração: “Não assassinarás” (Êxodo 20:13 NIV), e então afirmam que o mandamento proíbe a guerra e a pena de morte. No entanto, outras passagens da Bíblia ensinam que a guerra é certa em alguns casos, e que a pena de morte é certa em alguns casos. Essas passagens não contradizem o mandamento contra o assassinato, mas nos dizem o que o assassinato não é. Os assassinatos que ocorrem em guerras e execuções biblicamente justificadas não são assassinatos. Mas quando as pessoas isolam esse versículo do restante da Bíblia, elas impõem a ele uma definição pessoal e antibíblica de assassinato, de modo que sua compreensão desse mandamento tem pouca relevância para o que ele realmente diz.

Da mesma forma, é importante considerar os contextos amplo e restrito de nossa passagem. Jesus apresenta um conflito em cada uma das várias seções que examinamos. O conflito em cada seção não é entre Moisés e Jesus, mas entre a falsa interpretação da lei imposta pela tradição humana, ensinada pelos fariseus e escribas, e o verdadeiro significado da lei expressa pela revelação divina, agora reafirmada por Jesus Cristo. Isso significa que o que Jesus diz em cada seção é direcionado contra uma distorção específica da lei. Se isolarmos a resposta de Jesus da distorção, provavelmente não conseguiremos entender o que ele está dizendo. Portanto, ao ler nossa passagem, não devemos isolar os versículos 39–42 do versículo 38, do restante do Sermão (vv. 17–20) ou do restante da Bíblia.

Jesus inicia o conflito dizendo: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’” (v. 38). Agora, devemos perceber imediatamente que ele está falando contra uma distorção da lei, e não a própria lei. A declaração alude a várias passagens do Antigo Testamento, e uma vez que essas passagens devem ser lidas no contexto também, citaremos todos os parágrafos nos quais os versículos relevantes aparecem:

Se homens brigarem e ferirem uma mulher grávida, e ela der à luz prematuramente, não havendo, porém, nenhum dano sério, o ofensor pagará a indenização que o marido daquela mulher exigir, conforme a determinação dos juízes. Mas, se houver danos graves, a pena será vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão. (Êxodo 21:22–25)

Se alguém ferir uma pessoa a ponto de matá-la, terá que ser executado. Quem matar um animal fará restituição: vida por vida. Se alguém ferir seu próximo, deixando-o defeituoso, assim como fez lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Assim como feriu o outro, deixando-o defeituoso, assim também será ferido. Quem matar um animal fará restituição, mas quem matar um homem será morto. Vocês terão a mesma lei para o estrangeiro e para o natural da terra. Eu sou o SENHOR, o Deus de vocês. (Levítico 24:17–22)

Se uma testemunha falsa quiser acusar um homem de algum crime, os dois envolvidos na questão deverão apresentar-se ao SENHOR, diante dos sacerdotes e juízes que estiverem exercendo o cargo naquela ocasião. Os juízes investigarão o caso e, se ficar provado que a testemunha mentiu e deu falso testemunho contra o seu próximo, deem-lhe a punição que ele planejava para o seu irmão. Eliminem o mal do meio de vocês. O restante do povo saberá disso e terá medo e nunca mais se fará uma coisa dessas entre vocês. Não tenham piedade. Exijam vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé. (Deuteronômio 19:16–21)

A lei da retribuição nessas passagens tem um efeito duplo no sistema judicial da nação, ou seja, impede o tribunal de emitir punições que são muito severas ou muito brandas. Serve como princípio norteador para os juízes, ensinando-lhes que a punição deve ser adequada e proporcional ao crime.

Também evita que uma parte exija uma recompensa desproporcional de outra parte e, por sua vez, evita vinganças pessoais perpétuas e rixas familiares. Se alguém da sua família fere alguém da minha família e, como vingança, minha família mata essa pessoa da sua família, então o problema piorou e um banho de sangue quase inevitavelmente se seguirá.

Por outro lado, se o poder de punir pertence ao tribunal em vez do indivíduo, e se o tribunal emite punições que são proporcionais ao crime, isso não só garante que a justiça seja feita, mas também evita o agravamento da contenda. Assim, a lei da retribuição é tanto uma prescrição quanto uma restrição — prescrevendo punições justas e restringindo indenizações excessivas.

Como uma nota lateral, mais do que uns poucos comentaristas sugerem que a lei de retribuição não exige que os tribunais punam, mas apenas permite que eles punam. Isto é falso. Êxodo 21 diz: “O ofensor pagará a indenização […]. Mas, se houver danos graves, a pena será vida por vida”. Levítico 24 ensina: “Quem matar um animal fará restituição, mas quem matar um homem será morto”. E Deuteronômio 19 diz: “Os juízes investigarão o caso […]. Eliminem o mal do meio de vocês. Não tenham piedade”. A lei de retribuição exige explicitamente que os tribunais mantenham a justiça e determinem punições proporcionais ao crime. Os juízes não podem ser muito severos ou tolerantes.

Então, Jesus diz: “Mas eu digo: Não resistam ao perverso” (Mateus 5:39). Ao longo de todo o Sermão, ele dirigiu suas observações a indivíduos, e a presente passagem não é exceção. Enquanto a lei da retribuição governa os tribunais, Jesus está falando aos indivíduos sobre uma interpretação e aplicação errôneas dessa lei. Parece que os judeus adotaram a lei da retribuição como garantia de vingança pessoal. Portanto, aquele que foi injustiçado exigiria que o infrator o indenizasse em toda a extensão da lei. Jesus está falando contra isso. Ele não está se dirigindo aos tribunais, à polícia ou aos militares.

A passagem é frequentemente usada para apoiar a resistência não violenta ou protestos pacíficos, mas este é um mau uso flagrante do que Jesus diz. Ele está dirigindo seus comentários a indivíduos, e não a grupos ou movimentos políticos. Além disso, a passagem não ensina resistência não violenta, mas ensina não resistência — absolutamente nenhuma resistência! Portanto, é contraproducente aplicá-lo a esses protestos e movimentos. Outros o usam para apoiar o pacifismo, que as pessoas não devem se envolver na guerra por qualquer motivo. Novamente, Jesus está se dirigindo a indivíduos, e não ao governo ou aos militares. Mas quando a Escritura se refere aos oficiais do governo, ela diz: “Ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal” (Romanos 13:4).

Um estudo dos versículos 39–42 revela a aplicação pessoal do que Jesus tem em mente para esta seção.

Começando com o versículo 39, ferir na face direita de alguém é tanto um ato de insulto quanto um ato de agressão. Supondo que aquele que fere seja destro, como a maioria das pessoas, então, ferir na face direita da vítima pode significar bater nela com as costas da mão — um insulto até hoje, e especialmente naquela época.

Seguindo para o versículo seguinte, a lei proíbe que o manto/a capa de uma pessoa seja retirada permanentemente dela: “Se tomarem como garantia o manto do seu próximo, devolvam-no até o pôr do sol, porque o manto é a única coberta que ele possui para o corpo. Em que mais se deitaria? Quando ele clamar a mim, eu o ouvirei, pois sou misericordioso” (Êxodo 22:26–27). Mas Jesus diz: “E, se alguém quiser processá-lo e tirar de você a túnica, deixe que leve também a capa” (Mateus 5:40). Isso não contradiz a lei. Êxodo 22 trata da obrigação legal de quem tira a capa de alguém, mas Jesus se refere àquele cuja túnica e capa estão sendo tiradas.

O versículo 41 alude à prática em que os oficiais de uma nação têm o direito de exigir, dentro de certas limitações, o serviço dos membros de uma nação conquistada. Específico para o contexto do Novo Testamento, um soldado romano tem o direito de requisitar um cidadão judeu por seu serviço e assistência, por exemplo, para carregar a carga do soldado por uma milha¹ (ou mil passos). Por exemplo, os soldados romanos forçaram Simão de Cirene a carregar a cruz de Cristo (Mateus 27:32).

Finalmente, o versículo 42 diz: “Dê a quem pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir algo emprestado”. Jesus está apenas reafirmando o que a lei sempre ensina. Como Deuteronômio 15 diz: “Se houver algum israelita pobre em qualquer das cidades da terra que o SENHOR, o seu Deus, está dando a vocês, não endureçam o coração, nem fechem a mão para com o seu irmão pobre. Ao contrário, tenham mão aberta e emprestem-lhe liberalmente o que ele precisar” (vv. 7–8).

Novamente, não devemos usar esta passagem fora do contexto e isolá-la do restante da Bíblia. Deuteronômio 15:7–8 ensina generosidade, mas vamos aplicá-lo mal se o isolarmos de versículos como os seguintes:

Quem serve de fiador certamente sofrerá, mas quem se nega a fazê-lo está seguro. (Provérbios 11:15)

Quando ainda estávamos com vocês, nós ordenamos isto: Se alguém não quiser trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu próprio pão. (2 Tessalonicenses 3:10–12)

Embora a Bíblia ordene que sejamos generosos, ela também ensina contra empréstimos e doações imprudentes. Não há contradição, mas, tomadas em conjunto, as passagens nos dizem o que significa generosidade bíblica. Significa emprestar e dar àqueles que realmente precisam, mas negar àqueles que abusam de nossa generosidade, para que “se alguém não quiser trabalhar, também não coma”.

Jesus reafirma a lei. Não há base para afirmar que ele contradiz a lei ou vai além dela ao ensinar generosidade, porque 2 Tessalonicenses foi escrita por Paulo depois de Moisés e Jesus, e depois de Deuteronômio 15 e Mateus 5. Mostra que Moisés e Jesus nunca tiveram a intenção de ordenar um prática absoluta e não discriminatória de emprestar e dar.

Da mesma forma, isolar os outros versículos nos impedirá de um verdadeiro entendimento; em vez disso, devemos derivar uma posição coerente de toda a Escritura. Quando Jesus é atingido no rosto em seu julgamento, ele responde: “Se eu disse algo de mal, denuncie o mal. Mas, se falei a verdade, por que me bateu?” (João 18:23). Quando o sumo sacerdote ordena que Paulo seja golpeado na boca, o apóstolo responde: “Deus te ferirá, parede branqueada! Estás aí sentado para me julgar conforme a lei, mas contra a lei me mandas ferir?” (Atos 23:3). E como mencionado anteriormente em outro cenário, a lei nunca proíbe a autodefesa, mesmo ao ponto de matar o criminoso: “Se o ladrão que for pego arrombando for ferido e morrer, quem o feriu não será culpado de homicídio” (Êxodo 22:2). Depois, em várias ocasiões, Paulo afirma seus direitos como cidadão romano quando é perseguido pelas autoridades (Atos 16:36–39, 22:23–29, 25:11).

Assim como Jesus está corrigindo um abuso da Escritura, usar suas observações fora do contexto ou isolá-las do restante da Bíblia, como muitas pessoas têm feito, torna-se apenas outra maneira de abusar da Escritura. Isso resulta em posições teológicas que a Bíblia realmente não pretende transmitir e, portanto, frustra o próprio propósito para o qual Jesus fez esses comentários.

Temos o suficiente para um resumo e uma conclusão. Jesus está ensinando seus seguidores a manter um apego frouxo de sua dignidade pessoal (v. 39), seus direitos pessoais (v. 40), sua liberdade pessoal (v. 41) e sua propriedade pessoal (v. 42). Ele não revoga a lei da retribuição, mas não quer que isso justifique uma atitude vingativa. Por isso, ele convoca seus seguidores a assumirem uma atitude de sacrifício e generosidade, que a lei sempre ensinou: “Não procurem vingança nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o SENHOR” (Levítico 19:18); “Não diga: ‘Farei com ele o que fez comigo; ele pagará pelo que fez’” (Provérbios 24:29).

Às vezes, as pessoas inventam doutrinas e tradições que não são bíblicas, mas que vão na direção oposta da má interpretação judaica. Ficariam surpresos em saber que a Bíblia nunca se opõe à vingança como tal, mas proíbe a vingança pessoal. Na verdade, a Bíblia declara que a vingança é certa e que a justiça a exige, mas não somos nós que devemos cumpri-la; em vez disso, devemos deixar que Deus nos vingue: “Em sua justiça, Deus pagará com aflição aqueles que afligem vocês” (2 Tessalonicenses 1:6 NVT). Então, Paulo resume o ensino da seguinte forma:

Não retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam todo o possível para viver em paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: “Minha é a vingança; eu retribuirei”, diz o Senhor. Ao contrário: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele”. Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem. (Romanos 12:17–21)

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¹ Nota do Tradutor: A milha romana tinha cerca de 1.500 metros (nota da NVI em Mateus 5:41).

Vincent Cheung. The Sermon on the Mount (2012), pp. 81–85. Tradução: Luan Tavares (10/06/2021).

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