Os Cachorrinhos

Por Charles H. Spurgeon

Luan Tavares
30 min readJun 22, 2020

Ele, porém, respondeu: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. Ao que ela disse: Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos (Mt 15.26,27).

Respondeu-lhe Jesus: Deixa que primeiro se fartem os filhos; porque não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. Ela, porém, replicou, e disse-lhe: Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas dos filhos (Mc 7.27,28).

Recorro aos dois registros, de Mateus e Marcos, para que tenhamos o problema exposto como um todo à nossa frente. Possa o Espírito Santo abençoar nossa meditação deste momento em diante.

As joias mais reluzentes costumam ser encontradas nos lugares mais obscuros. Cristo nunca deparara com tamanha fé, nem em Israel. Não uma fé como a que descobriu nessa pobre mulher cananeia. Os limites e margens da terra costumam ser mais frutíferos que o centro e ali a agricultura ser mais abundante. Em um campo onde um fazendeiro poderia esperar não muita coisa além de ervas daninhas, o Senhor Jesus encontrara a mais rica espiga de trigo que até então compusera um feixe. Aqueles dentre nós que ceifamos após o Senhor sejamos encorajados a esperar experiência idêntica. Nunca falemos mal de área alguma da cidade, como se fosse perdida demais para nos dar convertidos, nem de nenhum grupo de pessoas como decaídas demais para se tomarem crentes. Vamos até as fronteiras de Tiro e Sidom, mesmo estando a terra sob maldição, pois ali descobriremos alguns eleitos, destinados a figurar como joias na coroa do Redentor. Nosso Pai celestial tem filhos em toda parte.

Em coisas espirituais, descobre-se que as melhores plantas, com frequência, crescem em terreno estéril. Salomão falou de árvores como o hissopo crescendo em muros, e o cedro, no monte Líbano. Assim é o mundo natural: as maiores árvores são encontradas em grandes montanhas, e as menores plantas, em lugares adequados às suas raízes minúsculas. Não é assim que acontece, no entanto, entre as árvores plantadas pela mão direita do Senhor. Neste sentido, espiritualmente, temos visto o cedro crescer sobre o muro — grandes santos em lugares onde aparentemente seria impossível que existissem — , e o hissopo crescer na montanha — uma devoção a Deus questionável e insignificante em lugares e condições das mais exuberantes e vantajosas. O Senhor é capaz de fazer uma fé vigorosa surgir e crescer cercada de pouco conhecimento, escassa alegria e raro encorajamento. Fé vigorosa que triunfa e vence em tais condições, glorificando a graça de Deus em dobro. Assim era essa mulher cananeia, um cedro crescendo em solo bastante limitado. Mulher de fé surpreendente, embora devesse ter ouvido falar pouca coisa daquele Messias em quem cria. Talvez nunca o tivesse visto pessoalmente até o dia em que prostrou-se a seus pés e disse: Senhor, socorre-me!.

Nosso Senhor tinha olhos e coração aptos a detectar a fé. Mesmo que uma joia estivesse na lama, seu olhar captava-lhe o brilho; se entre o joio se achasse uma excelente espiga de trigo, nunca deixaria de percebê-la. A fé sempre exerceu forte atração para o Senhor Jesus e à sua visão: o rei está preso pelas tuas tranças (Ct 7.5) e clama: enlevaste-me o coração com um dos teus olhares, com um dos colares do teu pescoço (Ct 4.9). O Senhor ficou sem dúvida fascinado pela formosa joia da fé da cananeia e, observando-a, deleitando-se nela, resolveu colocá-la sob forte luz, para que as várias facetas desse diamante de valor incalculável pudessem reluzir e assim comprazer sua alma. Eis por que ele lhe comprovou a fé, primeiro com silêncio, depois com respostas aparentemente desanimadoras, a fim de trazer à luz a sua força. Após aprazar-se nessa fé, sustentando-a em segredo, e considerando que já a provara e comprovara o suficiente, fê-la expor-se como preciosa e depositou então sobre tal fé o seu seio real, com essas palavras memoráveis: Ó mulher, grande é a tua fé! Seja-te feito como queres (Mt 15.28).

Tenho a esperança de que certamente esta manhã alguma pobre alma aqui presente, que se encontre sob circunstâncias muito desanimadoras, possa, ainda assim, ser levada a crer no Senhor Jesus Cristo, com uma fé como essa, vigorosa e perseverante. Embora a pessoa que porte tal fé talvez até agora não haja desfrutado de paz alguma, nem conhecido qualquer resposta graciosa às suas orações, confio em que a sua fé lutadora venha a ser fortalecida com o notável exemplo da mulher cananeia.

Da narrativa do apelo dessa mulher ao Senhor Jesus, e do sucesso que ela alcançou, extraio quatro fatos. O primeiro é os lábios da fé não podem ser fechados. O segundo: a fé nunca discute com Deus. Em terceiro lugar, concluo que a fé argumenta com poder. Em quarto lugar, a fé consegue o que quer.

I. OS LÁBIOS DA FÉ NÃO PODEM SER FECHADOS.

Se alguma vez a fé de uma mulher foi provada a ponto de quase fazê-la desistir, foi no caso desta filha de Tiro e Sidom. Ela teve de lidar com dificuldade atrás de dificuldade, mas nem por isso nada pôde impedi-la de rogar por sua filha, por acreditar em Jesus como o grande Messias, capaz de curar todas as formas de enfermidade. Estava disposta a suplicar até que ele cedesse diante de sua impertinência. Estava confiante em que somente Jesus seria capaz de expulsar o demônio de sua filha.

Note que os lábios da fé não podem ser fechados apesar, até, dos aparentemente ouvidos fechados e lábios cerrados de Cristo. Ele não lhe disse, de imediato, sequer uma palavra em resposta. A mulher falara com grande ansiedade, depois se aproximou e provavelmente se atirou a seus pés. O caso de sua filha era muito urgente. Sentia seu coração materno derreter, lançava lancinante clamor, mas, apesar de tudo isso, em momento algum ele lhe dava uma palavra como resposta. Como se fosse surdo-mudo, Jesus parecia ignorá-la. Contudo, ela não esmoreceu. Em vez disso, creu nele. Nem o próprio Cristo conseguiria tê-la feito duvidar dele, mesmo que a tentasse silenciar.

É difícil continuar crendo quando nossa petição parece ser um fracasso. Por Deus, eu gostaria que toda pobre alma aqui presente que tem buscado o Senhor pudesse crer que Jesus Cristo é capaz de salvá-la e está disposto a isso; mas que cresse tão plenamente que suas orações sem resposta não conseguissem de modo algum fazê-la duvidar. Mesmo que você ore aparentemente em vão, durante um mês inteiro ou mais sem interrupção, não permita que passe por sua mente uma dúvida que seja acerca do Senhor Jesus e do seu poder para salvar. E daí, se você ainda não conseguiu alcançar a paz, que a fé, no final, lhe trará? E daí, se você ainda não tem certeza do perdão do seu pecado? E daí, se nenhum lampejo de alegria interior lhe visita ainda o espírito? Creia nele, mesmo assim, naquele que não pode mentir. Embora ele me mate, disse Jó, ainda assim esperarei nele (Jó 13.15). Essa era uma esplêndida. Seria muito para alguns de nós se pudéssemos dizer: “Ainda que ele me fira, ainda assim crerei nele”. Jó, no entanto, fala me mate. Se ele se passasse por um verdugo e saísse ao meu encalço como que para me destruir, ainda assim eu iria crer que ele está repleto de amor por mim. Cristo é benigno e cheio de graça de toda forma, e não posso duvidar disso. Portanto, a seus pés estarei e a ele erguerei meus olhos, esperando receber graça de suas mãos. Oh, que fé quero ter! Ah, não haja dúvida: se você a tem, sua alma está salva — e isso é tão certo quanto o fato de você estar vivo. Se nem a aparente recusa do Senhor em abençoá-lo puder calar seus lábios, significa que você tem uma fé nobre e a salvação lhe pertence.

Além disso, a fé daquela mulher não podia ser silenciada pela conduta dos discípulos. Eles não a trataram propriamente bem, mas não se pode dizer que a tenham tratado mal assim. Não eram, na verdade, gentis como o seu mestre, pois frequentemente afastavam alguns que dele se aproximassem. A algazarra feita pela cananeia, todavia, os aborreceu, e ainda por cima ela resolveu insistir com uma perseverança que lhes pareceu infinita. Até que chegaram a Jesus, pedindo, por favor: “Despede-a, porque vem clamando atrás de nós” (Mt 15.23). Pobre alma! Em nenhum momento, ela havia clamado atrás deles, ou seja, lhes suplicado qualquer ajuda, mas, sim, buscava insistentemente se fazer ouvir pelo próprio mestre. Os discípulos costumavam assumir, de vez em quando, ares de importância excessiva aos próprios olhos. Esqueciam que os empurrões e ajuntamentos para ouvir o evangelho não era causado pelo anseio do povo em ouvi-los; pelo contrário, sabemos que ninguém, depois, daria a mínima atenção ao que tivessem a dizer não fosse pela mensagem do evangelho, que ficaram então encarregados de transmitir. Bastaria lhes haver sido dado qualquer outro assunto a tratar, e a multidão logo se desfaria. Embora cansados do clamor da mulher, que lhes parecia importuno, agiram, no entanto, nesse caso, com certa atenção para com ela, mostrando-se de certo modo interessados em vê-la alcançar o que buscava. Isso faz que a resposta do nosso Senhor não tenha sido, então, inteiramente inapropriada, pois dirigiu-se a eles: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Advertia-os, assim, de que não estavam propriamente se importando com a cura da filha da mulher, mas, sim, que pensavam mais no próprio conforto, ansiosos que se mostravam por se verem livres dela: Despede-a, pediram, porque vem clamando atrás de nós (Mt 15.23). Todavia, embora não a tratassem do modo com que os homens judeus naquela época tratariam geralmente uma mulher, mas, sim, como sabiam que, na qualidade de discípulos de Jesus, deveriam tratar alguém em busca de uma resposta; embora a tratassem, enfim, como os cristãos devem tratar todas as pessoas, principalmente os aflitos, apesar de tudo isso ela não se calava.

Pedro talvez a observasse com um jeito até certo ponto desdenhoso; talvez João tenha ficado um pouco impaciente, pois tinha pavio curto por natureza; provavelmente, André, Filipe e os demais a considerassem por demais impertinente e presunçosa. Não importa. Ela parecia não estar interessada no que dela pudessem imaginar; só pensava na filha que havia deixado em casa e na miséria horrorosa a que o demônio a submetia. Assim foi que clamou, insistente, aos pés do Salvador: Senhor, socorre-me. Palavras supostamente frias e duras, um comportamento que muitos considerariam até antipático, não conseguiram impedi-la de suplicar àquele em quem cria.

Ah, pobre pecador, talvez você esteja dizendo: “Anseio por ser salvo; no entanto, um ou outro crente foi um tanto áspero comigo, duvidou da minha sinceridade, questionou a realidade do meu arrependimento, causou-me raiva, mágoa e aborrecimento. Parece até que não querem que eu seja salvo”. Essa experiência, meu querido amigo, pode ser, de fato, uma grande provação, mas se você tem fé verdadeira no mestre não se importe muito conosco, os discípulos, nem com o mais gentil nem com o mais ríspido ou frio entre nós; siga em frente simplesmente com a sua petição ao seu Senhor e Salvador até que ele haja por bem dar-lhe uma resposta de paz.

Repito, os lábios dela não se fecharam ante uma doutrina supostamente exclusivista, que parecia restringir a bênção a uns poucos favorecidos. Disse o Senhor Jesus Cristo: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. E embora não exista nada de exclusivista, muito menos de ríspido nesta frase, se bem compreendida, poderia ter-se abatido sobre o coração da mulher como um peso de chumbo. “Meu Deus”, ela poderia ter pensado, “ele não foi enviado a mim. Então, estou buscando em vão por um socorro que ele reserva somente aos judeus?” Ora, a doutrina da eleição ensinada nas Escrituras não impede alma alguma de se aproximar de Cristo. Se bem entendida, encoraja mais que desestimula essa aproximação. Com frequência, porém, para um ouvido despreparado, como é o da maioria dos não crentes, a doutrina da escolha divina desde antes da fundação do mundo tem geralmente um efeito muito depressivo. Temos conhecido pobres almas em busca do Senhor que afirmam, em tom de lamentação: “Vai ver, então, que não há misericórdia para mim; pode ser que eu esteja justamente entre aqueles para quem não existe propósito algum de misericórdia por parte de Deus”. Essas pessoas têm sido levadas a querer parar de pedir e orar, com medo de perder seu tempo e não valer a pena insistir mais, por não serem predestinadas à cura, à salvação e à vida eterna.

Ah, alma querida, como a fé dos eleitos de Deus se revela em você, então não serão as suas errôneas deduções autocondenatórias, extraídas de supostos segredos de Deus, que irão deixá-lo de fora. Pelo contrário, se você crê naquilo que lhe tem sido revelado com toda a clareza, pode estar seguro de que há como contradizer os decretos dos céus. Embora houvesse um povo escolhido, em conformidade com a antiga aliança, e mesmo tendo sido nosso Senhor enviado, em sua vinda à terra, apenas, ou prioritariamente, a esse povo, ou seja, à casa de Israel, seu sacrifício logo viria justamente a gerar, ou revelar, a existência de um povo seu, uma casa de Israel não segundo a carne, mas segundo o espírito. A mulher siro-fenícia, por exemplo, estava sem dúvida dentro deste outro povo, mesmo que imaginasse ter sido excluída; e você também pode estar incluído nesse destino glorioso e que agora tanto o angustia. De todo modo, diga sempre a si mesmo: “Na eleição da graça, outros tão pecadores quanto eu têm sido incluídos. Por que não aconteceria o mesmo comigo? Têm sido incluídos outros que se sentiam tão cheios de angústia quanto eu por causa do pecado. Por que, então, eu deixaria de ser incluído?” Raciocinando assim, você estará perseverando e seguindo em frente, com esperança e, ao mesmo tempo, crendo, como Abraão, contra a esperança, sem sofrer com nenhuma conclusão por conta própria de qualquer doutrina das Escrituras, que possa vir a impedido de crer no escolhido Redentor.

Os lábios da fé neste caso não estavam fechados por um sentido de indignidade confessa. Cristo mencionou os cachorrinhos querendo dizer que os gentios eram para Israel como os cães em relação às pessoas, ou seja, de alguma importância, sim, mas secundária. A mulher não contestou; submeteu-se a ele, simplesmente aceitando: Sim, Senhor. Achava-se digna, no caso, de ser comparada apenas a um cachorrinho da casa; e não há por que duvidarmos, então, que existisse aí o sentido justamente de não ser digna ou merecedora da bênção de Cristo. Ela não esperava, portanto, conquistar o benefício que buscava tendo por base seu próprio mérito. Não. Dependia, isso sim, inteiramente da misericórdia e da bondade do coração de Cristo, e não, absolutamente, de sua reivindicação; da excelência do poder do Senhor, em vez da duvidosa qualidade do seu pleito. Por isso, embora consciente que estava de ser apenas um pobre cãozinho sem mérito, isso não a impediu de clamar e pedir. E ela clamou: Senhor, socorre-me.

O pecador, se você se sente o pior dos pecadores do lado de fora do inferno, ore mais, continue orando pela misericórdia divina e nela crendo. Mesmo que o seu senso de indignidade seja tal que tende a poder levá-lo até a autodestruição, ainda assim, eu lhe suplico, da mais baixa profundeza do calabouço do seu autodesprezo, clame a Deus! Pois sua salvação não depende, em medida alguma ou grau algum, de você mesmo, de algo que você é, ou tenha sido, ou possa vir a ser. Na verdade, você precisa é ser salvo de si mesmo, mas não por si mesmo. Cabe a você tão somente se esvaziar, para que Jesus possa novamente preenchê-lo. Cabe a você confessar sua imundície, para que ele possa então purificá-lo. Cabe a você considerar-se ser menos do que nada, a fim de que Jesus possa ser mais do que tudo em sua vida. Não permita, de modo algum, que a quantidade, a obscuridade, a intensidade ou a frequência de suas transgressões, ou quão odiosas possam ser, lhe façam calar a oração. Mesmo sendo um cachorro de rua, abandonado, indigno até mesmo de ser contado entre os cães de raça da matilha do Senhor, mesmo assim, abra a sua boca em uma oração de fé.

Observemos, também, haver um tom e uma vitalidade no que o Senhor Jesus disse que poderia vir a abater a esperança da mulher e reprimir-lhe a oração. Contudo, ela não se deixou abalar nem pelas mais obscuras e deprimentes sugestões da resposta. Não é bom, disse o Senhor, ou seja, não convém, não é apropriado, não é legítimo, tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos (Mt 15.26). Pode ser que ela não percebesse tudo o que ele talvez quisesse dizer, mas aquilo que compreendia era certamente suficiente para despejar água fria na chama de sua esperança. Contudo, apesar disso, sua fé não se extinguiu. Era uma fé de tipo imortal, dessas que nada ou ninguém pode matar. A mulher cananeia estava determinada, e o que quer que Jesus quisesse ou não dizer, ela não deixaria de confiar inteiramente nele e somente nele, e a insistir exatamente com ele para ter atendida sua demanda.

Há muita coisa no evangelho e em tomo que os homens enxergam apenas como que em meio a uma neblina. Se mal interpretadas, mais repelem do que atraem a alma de quem busca a Deus. Seja o que for, porém, precisamos assumir a firme decisão de nos achegarmos a Jesus, dispostos a correr todo tipo de risco, se necessário for. “Se eu perecer, pereci”, diz a Palavra. Além da já comentada grande pedra de tropeço da eleição, existem outras verdades e fatos que quem está buscando o Senhor aumenta ou diminui e interpreta errado, até vir a deparar com mil dificuldades para seu entendimento. Perturba-se, então, com a experiência cristã, com o novo nascimento, com o pecado inato, com todo e qualquer tipo de coisa. Na realidade, mil leões atravessam o caminho da alma que busca chegar a Jesus, mas aquele que dá a Cristo a fé que ele merece diz consigo mesmo: “Nada disso temerei. Socorre-me, Senhor, e eu em ti confiarei. Aproximar-me-ei de ti, passarei por cima dos obstáculos para chegar a ti e me atirarei a teus pés amados, sabendo que todo aquele que vem a ti de maneira nenhuma tu o lanças fora”.

II. A FÉ NUNCA DISCUTE COM DEUS. A fé, simplesmente, crê, confia, adora. Observe como Mateus se expressa: Então veio ela e, adorando-o, disse. A fé suplica e ora. Observe como Marcos coloca: “Rogava-lhe”. Ela clamou Senhor, socorre-me depois de ter dito Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim (Mt 15.22). A fé apela, mas não contesta; não contesta nem mesmo a palavra mais dura procedente de Deus, como a proferida por Jesus. Se a fé contestasse — o que seria uma inverdade — , não seria mais fé, pois quem contesta é a descrença. A fé em Deus implica concordância total com o que ele diz e, por conseguinte, exclui a ideia da dúvida. A genuína fé crê em tudo que sai da boca de Deus, seja desanimador, seja encorajador. Nunca levanta um “mas”, um “se”, um “no entanto”, mas se atém a: “Tu o disseste, Senhor, portanto é verdade; tu o determinaste, Senhor, portanto está certo”. Jamais passa disso.

Observe em nosso texto que a fé concorda com tudo o que o Senhor diz. A mulher cananeia respondeu: “Sim, Senhor”. O que Jesus quer dizer? “Você pode ser comparada a um cachorrinho.” “É verdade, Senhor, sou mesmo.” Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos (Mt 15.26). “Tem razão, Senhor, não seria adequado; eu não aceitaria que nem um dos teus filhos fosse privado da graça por minha causa.” “Ainda não chegou a sua hora”, disse Jesus, “os filhos devem ser alimentados primeiro; ou seja, os filhos na hora da refeição, e os cachorrinhos depois. Agora é a vez de Israel, dos filhos; os gentios, os cachorrinhos, virão depois. Mas não agora.” Ela quase diz: “Sei disso, Senhor; e concordo com tudo isso”.

A mulher cananeia não questiona nem discute a justiça do Senhor de dispensar sua própria graça segundo sua vontade soberana. Ela não erra, como fazem alguns, levantando suas irritadiças objeções à soberania divina. Seria uma prova dela de que teria como esses, pouca ou nenhuma fé, se assim o fizesse. Ela não discute o plano e a ordem estabelecidos pelo Senhor para a distribuição do pão. Deixa que primeiro se fartem os filhos (Mc 7.27), disse Jesus, e ela não contestou ser aquele o momento para isso; ao contrário de muitos que não aceitam ser agora o tempo aceitável e ficam procrastinando — enquanto essa mulher antecipou, sem precisar contestar, o dia da graça. Ela não levantou questão alguma sobre ser impróprio ou não tirar o pão da aliança dos filhos e dar aos gentios incircuncisos. Não tinha nenhuma intenção de que Israel fosse lesado, ou deixasse de receber a bênção a que tinha direito, por sua causa. Como simples cachorrinho que era, não pensava nem podia aspirar a que qualquer propósito de Deus, qualquer direito da casa divina, viesse a ser alterado só por sua causa. Aquiesceu a todas as ordens do Senhor.

Essa é a verdadeira fé que salva, a que concorda com a mente de Deus mesmo quando possa parecer adversa a si, que crê nas declarações e revelações de Deus, quer pareçam agradáveis, quer terríveis; que aceita inteiramente a palavra de Deus, quer seja um bálsamo para sua ferida, quer seja uma espada a cortar mais ainda. Contra a palavra de Deus verdadeira, ó homem, não lute; curve-se diante dela. Não é tomando armas contra o que Deus declara, como fazem alguns, que age a fé viva e verdadeira em Jesus Cristo; nem que se obtém a paz com Deus. Em nossa submissão, está a nossa segurança. Diga Sim, Senhor, e você encontrará salvação.

Observe que a mulher não só concordou com tudo o que o Senhor disse, como também o adorou em tudo. “Sim”, diria ela, “no entanto, tu és meu Senhor. Tu me consideras um cachorrinho, mas tu és o dono; tu és o meu Senhor. Tu me consideras indigna de receber agora as tuas benesses, mas, tudo bem, porque tu és aquele que manda; tu és o meu Senhor, e eu te adoro e reconheço como tal.” Tem a mesma mente de Jó: Receberemos de Deus o bem, e não receberemos o mal? (Jó 2.10). Está disposta a receber o que pode até não ser o melhor para eia, mas dizer: “Quer o Senhor me dê, quer se recuse a fazer isso, bendito seja o seu nome; ele é o meu Senhor”. Eis uma grande fé, que lança fora o espírito de contenda e não só concorda com a vontade do Senhor, como também o adora por meio dela. Seja como for, ó Senhor, mesmo que a verdade venha a me condenar, ainda assim tu és o Senhor, e eu confesso a tua divindade, confesso tua excelência, reconheço teus plenos direitos de realeza e me submeto inteiramente a ti. Faze para comigo segundo a tua vontade.

Note bem: quando a cananeia diz Sim, Senhor, ela não continua a falar para sugerir que uma alteração qualquer deva ser feita em seu benefício. “Sim, Senhor, tu me classificaste entre os cães”, diria, no caso, e em seguida pediria: “Mas tu não me podes colocar entre os filhos?” Pelo contrário: ela pede apenas, já que é um cachorrinho, para ser tratada então como o são os cachorrinhos, em casa. Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa (Mc 7.28), lembra. Não quer que propósito algum de Deus seja alterado nem que ordenação alguma seja mudada, muito menos que se revogue qualquer decreto. “Seja feita a tua vontade, Senhor, ela é a minha vontade”, é a essência do que diz. Ela vislumbra um lampejo de esperança onde, se não tivesse fé, veria apenas a escuridão do desespero. Tenhamos nós uma fé como a dela e jamais entremos em tolas controvérsias com Deus.

III. Chegamos agora a uma parte interessante do nosso assunto, qual seja, A FÉ ARGUMENTA, embora não discuta. Sim, Senhor, disse ela, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa. O argumento dessa mulher estava correto e rigorosamente lógico em seu conjunto. Era baseado nas premissas do próprio Senhor, e você sabe que, ao se debater qualquer assunto, não há nada melhor do que pegar as declarações do interpelador e argumentar em cima delas. Ela não prossegue apresentando novas premissas, ou discutindo as apresentadas e procurando se defender, como: “Que é isso, Senhor? Eu não sou cachorro, não!” Em vez disso, concorda: “Sim, Senhor, eu sei que sou um cachorrinho”. Aceita essa declaração de Jesus e a utiliza como um bendito argumento, de modo jamais superado neste mundo. Tomando as próprias palavras da boca do mestre, usa delas com inspirada sabedoria para prevalecer, como Jacó prevaleceu na luta com o anjo.

Existe tamanha força no argumento dessa mulher que praticamente quase me desespero esta manhã para poder conseguir mostrar tudo isso a vocês. No entanto, devo observar que os tradutores causaram grande dano ao texto ao optarem pela conjunção adversativa “mas”. No grego, ela não existe, mas, sim, outro termo, bem diferente. Vejamos uma versão que considero mais adequada. Jesus disse: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. “Não”, responderia ela, “na verdade, não seria bom fazer isso; pois os cachorrinhos já têm a sua parte garantida, já que comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos. Seria bastante impróprio dar-lhes o pão dos filhos, porque eles já têm garantido seu próprio pão. Concordo então, Senhor, que não seria bom dar aos cachorrinhos o pão dos filhos, porque já recebem sua parte, comendo das migalhas que caem da mesa dos filhos. Isso é tudo o que eles têm direito e que poderiam querer; e é tudo o que eu desejo, Senhor. Não te peço que me dês o pão dos filhos, só te peço as migalhas que caem da mesa para os cachorrinhos.”

Analisemos agora a força do seu raciocínio, que se revela de várias formas. A primeira forma, exponho a seguir: A mulher argumentou com Cristo da posição de alguém que acalenta uma esperança. “Eu sou um cachorrinho”, argumenta ela, “mas, Senhor, percorreste um longo caminho até aqui, até Sidom, e como estás em pessoa aqui, na fronteira do meu país, acho que não posso mais me considerar um cachorro de rua, mas, sim, um cachorrinho de casa, que está debaixo da tua mesa”. Marcos nos diz que ela afirma:… mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas dos filhos. Poderia ter dito, de outra forma: “Senhor, vês a minha situação? Eu era um cão de rua, distante de ti; agora, porém, tu vieste e pregaste dentro das nossas fronteiras, e estou tendo o privilégio de te ver e ouvir. Muitos têm sido curados, e tu estás, nesta mesma casa, fazendo atos de divina graça, enquanto observo tudo. Embora eu seja um cachorrinho, estou debaixo da tua mesa. Deixa-me receber, Senhor, pelo menos as migalhas que caem da mesa”.

Compreende, querido ouvinte? Você reconhece que é um pecador, um miserável pecador, mas diz: “Senhor, sou um pobre pecador que teve permissão para ouvir o teu evangelho, portanto como ele me abençoa. Sou um cão, sim, mas estou debaixo da mesa; trata-me como tal. Se há um sermão sendo pregado para o conforto do teu povo, estou presente para ouvi-lo. Sempre que os santos se congregam, preciosas promessas são apresentadas, e eles se regozijam nelas, estou ali, olhos voltados para cima, ansiando poder estar entre eles. Agora, Senhor, como me deste a graça de deixar ser um ouvinte do evangelho, creio que não me rejeitarás em meu desejo de ser também um receptor dele. Pois, com que finalidade e propósito me trouxeste para tão perto de ti, ou chegaste tão perto de mim, se depois de tudo tu me rejeitasses? Cão eu sei que sou, mas estou debaixo da tua mesa. É um privilégio ser favorecido com a possibilidade de permanecer junto dos filhos, mesmo que para me deitar a seus pés. Oro a ti, então, bom Senhor, já que agora tenho permissão para erguer os olhos a ti, para te pedir esta bênção: não me rejeites”. Para mim, parece que foi esse um ponto forte no caso da mulher, que ela soube utilizar, e muito bem.

Seu argumento foi, ainda, encorajador do seu relacionamento Sim, Senhor, diz ela, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos. Veja a ênfase dada aqui por Mateus: da mesa dos seus donos (Mt 15.27). “Não posso dizer que és meu Pai, Senhor, tampouco erguer os olhos e reivindicar o privilégio de ser teu filho. Mas tu, pelo menos, és meu mestre, meu Senhor, e os senhores, os donos, dão de comer a seus cães. Pelo menos, as migalhas que caem de sua mesa eles deixam para os cachorros que os têm como dono”.

Esse argumento é muito parecido com aquele sugerido pela mente do pobre filho pródigo ao retornar à casa paterna. Ele achou que deveria dizer ao pai: Trata-me como um dos teus empregados (Lc 5.19). A diferença está apenas no fato de a fé dele ter sido mais frágil que a da mulher cananeia. “Senhor, se não mantenho uma relação contigo como filho, sou, no entanto, tua criatura. Tu me fizeste, de modo que olho para ti e te imploro com veemência que não me deixes perecer. Se não tenho nenhum outro ponto de apoio em ti, tenho este, pelo menos: devo te servir e sou, portanto, teu servo, embora um fugitivo. Pertenço a ti ao menos pela aliança das obras, se não pela aliança da graça. Oh, já que sou teu servo, não me rejeites por completo. Tu tens propriedade sobre mim, de todo modo, pela criação. Olha para mim e me abençoa. Os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos; permite-me fazer o mesmo.” A mulher observa a relação do cachorrinho com seu dono e tira o máximo proveito disso com bendita criatividade, que faríamos bem imitar.

Observemos, ainda, que ela usa como argumento a associação com os filhos. Neste ponto, devo lhes dizer que considero uma pena não ter sido possível aos nossos tradutores esclarecer qual seja, afinal, a essência da passagem. A mulher estava pedindo por sua filha, e nosso Senhor lhe diz: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. A palavra é um diminutivo, e a mulher fixou-se nisso. O termo “cachorros” não seria, neste caso, tão adequado quanto o foi “cachorrinhos”. Observem que a mulher retruca: Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas. No Oriente, na época, mandava a regra que os cães não entrassem em casa. Eram considerados animais imundos, que perambulavam pelas ruas sem que ninguém lhes desse importância; quase, na verdade, selvagens. O cristianismo elevou o cão a uma condição melhor, fazendo dele companheiro do homem, como de toda criatura bruta, até que a crueldade da vivissecção e as brutalidades das pessoas vieram a ser conhecidas como horrores de uma época bárbara, que ficou no passado. De todo modo, o cão ainda ocupa posição bem inferior na escala de vida, no Oriente. Em alguns lugares, vagueia pelas ruas em busca de comida e tem um temperamento pouco melhor que de um lobo. Os orientais adultos, em geral, não criam cães, tendo preconceito contra eles; já as crianças, não sendo tão tolas, se relacionam mais com os cãezinhos. O pai costuma não permitir aos cães se aproximarem dos filhos, mas os filhos, desconhecendo o motivo dessa insensatez, não dão a ela maior importância e fazem os cachorrinhos acompanhá-los em suas brincadeiras. Assim, os cachorrinhos entram para debaixo da mesa, sendo tolerados dentro de casa mais por causa das crianças. A mulher cananeia parece argumentar nesse sentido: “Tu nos consideras, e eu assim também me considero e à minha filha cachorrinhos. Pois, então, os cachorrinhos estão debaixo da mesa, junto aos filhos. Eles se relacionam com as crianças, tal como estive com teus discípulos Não sou um deles, não sou filha, mas ao menos os tenho seguido e ficaria contente se pudesse ter a honra de estar entre eles”.

Para ser sincero, como eu gostaria que alguma pobre alma se agarrasse a essa palavra e dissesse: “Senhor, não mereço reivindicar ser considerado um de teus filhos, mas amo estar sentado entre eles. Nada me dá maior felicidade do que estar junto deles! E bem verdade que às vezes me irritam e aborrecem, como as crianças apertam e machucam seus cachorrinhos, mas, na maior parte das vezes, me afagam, me agradam, falam comigo com gentileza e me confortam, oram por mim e desejam sinceramente minha salvação. Por isso, aqui estou, junto a eles; dá-me então, pelo menos, o tratamento de um cachorrinho; e as migalhas de misericórdia que almejo, que caem da mesa”.

O argumento da mulher vai mais longe, pois o cachorrinho come as migalhas do pão dos filhos, para deleite das crianças. Quando uma criança tem seu cachorrinho por perto enquanto come, o que faz? Ora, é claro, lhe dá pequenos pedaços do alimento de vez em quando. O próprio cachorro toma ampla liberdade e se serve tantas vezes quanto quiser. Quando os cachorrinhos estão com as crianças à hora da refeição, com certeza ganham migalhas de um ou de outro de seus companheiros de brincadeiras. Ninguém se opõe a que comam o que obtenham. Assim, a mulher cananeia parece dizer: “Senhor, aí estão os teus filhos, os teus discípulos. Eles não me tratam muito bem como deveriam. Na verdade, os filhos não tratam sempre bem os cachorrinhos. Apesar disso, Senhor, eles parecem mostrar que desejariam que eu recebesse a bênção que estou buscando. Eles têm porção plena de ti, têm a tua presença, têm a tua palavra. Sentam-se aos teus pés e têm alcançado todos os tipos de bênçãos espirituais. Tenho certeza de que não ficarão ressentidos por eu receber um único benefício que seja. Estão desejosos de que o demônio seja expulso de minha filha, e essa bênção, comparada às que recebem, é apenas uma migalha. Ficarão felizes se eu a receber. Portanto, Senhor, respondo agora ao teu argumento. Disseste que não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos; mas, Senhor, os filhos estão satisfeitos e bastante desejosos de que eu receba também a minha porção. Concordam em permitir que eu fique com as migalhas. Não as darias a mim?”

Entendo que houve ainda outro ponto forte na argumentação da mulher: a abundância de provisão. Tinha uma grande fé em Cristo e acreditava em grandes coisas a seu respeito. Por isso, diria: “Senhor, não há grande força em teu argumento, se pretendes provar que não devo receber o pão por precaução de que não haja o suficiente para os filhos; pois tens tanto que, ao mesmo tempo que os filhos estão sendo alimentados, os cães podem ficar com as migalhas e ainda assim sobrará e haverá bastante, e com abundância, para teus filhos”. De fato, os cachorrinhos jamais poderiam ser admitidos debaixo da mesa de um pobre, que não pudesse se dar ao luxo de perder sequer uma migalha; mas se se trata da mesa do riquíssimo Rei, onde há enorme fartura de pão e cujos filhos podem se saciar à vontade, os cachorrinhos, é claro, podem ser admitidos para que comam os restos debaixo da mesa — não propriamente o pão que o dono lança fora, mas as migalhas que caem, porque são tantas que há o suficiente para os cães sem que os filhos sejam privados de um só bocado que seja. “Não, Senhor”, diria a cananeia, “não há necessidade alguma de que tires o pão de teus próprios filhos, e que tal coisa jamais seja desejada por mim. Há em tua mesa mais do que o suficiente para teus filhos, em teu amor e misericórdia transbordantes, e ainda bastante também para mim, pois tudo o que quero são só umas migalhas, se comparado com o que dia após dia dás generosamente a teus filhos.”

Eis agora o último ponto que deu força ao seu argumento. Ela viu a situação do mesmo ponto de vista de Cristo. “Se me vês como a um cachorrinho, Senhor”, diria ela, “então, lançando mão dessa tua própria palavra e argumento, a cura que te peço para minha filha é apenas uma migalha do que o teu grande poder e bondade podem me conferir”. Ela usou uma palavra que contém, em si, a ideia de algo bastante diminuto, migalha: Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos sem donos. Que fé ousada a sua! Valorizava a misericórdia que buscava, colocando-a acima de tudo. Considerava que a misericórdia divina valia dez mil talentos, mas, para o Filho de Deus, seria apenas uma simples migalha, tal sua riqueza em poder para curar, tal sua plenitude de bondade e bênçãos. Se um homem dá uma migalha a um cachorro, significa que pouco tem a perder; se Jesus dá misericórdia ao maior dos pecadores, ele também nada tem a perder: simplesmente continuará tão rico quanto antes em bondade, misericórdia e poder para perdoar. O argumento da mulher foi muito correto. Foi tão sábia quanto sincera e, melhor que tudo, revelou possuir uma fé maravilhosa.

Encerrarei este esboço de argumento afirmando que, no fundo, a mulher estava, na verdade, argumentando de acordo com o propósito eterno de Deus; pois qual o grande desígnio do Senhor ao dar o pão aos filhos, ou, em outras palavras, ao enviar uma revelação divina a Israel? Foi sempre seu alto propósito que os cachorrinhos obtivessem o pão por intermédio dos filhos. Ou seja, que o evangelho fosse entregue aos gentios por intermédio de Israel. Sempre foi plano de Deus que, ao abençoar sua própria herança, seu caminho viesse a ser conhecido em toda a terra, e sua força para curar, entre as nações. Essa mulher cananeia, de um modo ou de outro, mediante inspiração divina, veio a se enquadrar no método do Senhor. Embora não lhe haja desvendado o segredo, ou, pelo menos, não fica explicito que isso tenha acontecido, contou, todavia, com uma força inata em sua argumentação. Essa argumentação era, em resumo, a seguinte: “E pelos filhos que os cachorrinhos têm de ser alimentados. Não te peço, Senhor, que deixes de dar aos filhos o pão que lhes pertence; tampouco te peço apressar a refeição dos filhos. Sejam eles fartamente alimentados, em primeiro lugar. Mas, ainda enquanto estejam se alimentando, permite-me receber das migalhas que caiam das mãos bem cheias deles, e já me darei por satisfeita”. Este é um argumento altamente estimulante para você, pobre pecador que se aproxima de Deus. Deixo-o em suas mãos e oro para que o Espírito de Deus o ajude a usá-lo. Se conseguir usá-lo bem, você prevalecerá sobre o Senhor, como quer o Senhor, neste dia.

IV. Nossa manchete de encerramento é esta: A FÉ CONSEGUE O QUE QUER. A fé da cananeia, em primeiro lugar, conquistou-lhe um elogio. Jesus disse: Ó mulher, grande é a tua fé! (Mt 15.28). Ela, bem provavelmente, nunca ouvira profecias relacionadas a ele. Não nascera nem fora criada e educada de tal modo a que provavelmente viesse acabar se tomando uma crente em Jesus. E, no entanto, tomou-se uma fiel de primeira grandeza. Foi maravilhoso que isso acontecesse, e na verdade a graça se delicia em operar maravilhas. Ela nunca antes vira o Senhor, em toda a sua vida, tampouco era dos que o acompanhavam aonde quer que fosse. Contudo, bastou vê-lo uma única vez para adquirir essa grande fé. Foi surpreendente, sim, mas a graça de Deus é sempre surpreendente. Provavelmente, também nunca tivesse visto antes um milagre dele. Toda a sua fé certamente teve de se apoiar sobre o que ouvira a seu respeito, por alto, em seu país: que o Messias dos judeus viera e estava operando maravilhas. A siro-fenícia creu que aquele homem de Nazaré e o Messias eram a mesma pessoa, ali presente, e nisso inteiramente confiou. O irmãos, com todas as vantagens que vocês têm, com as oportunidades que se nos apresentam de conhecermos a vida inteira de Cristo e compreendermos as doutrinas do evangelho conforme nos foram reveladas no Novo Testamento, com vários anos de observação e experiência, nossa fé não deveria, então, ser muito mais forte do que é? Essa pobre mulher não nos envergonha quando a vemos, com tão parcas oportunidades, ser tão forte na crença em Cristo, a ponto de ele próprio a elogiar, dizendo: Ó mulher, grande é a tua fé!?

Sua fé, porém, foi mais além, pois ela conquistou um elogio pelo seu modo de agir. Segundo relata Marcos, Jesus disse: Por essa palavra, vai; o demônio já saiu de tua filha (Mc 7.29). E como se a recompensasse tanto por suas palavras quanto pela fé que as sugerira. Jesus se revela tão feliz pelo modo sábio, prudente, humilde, mas corajoso, com que ela usara as próprias palavras dele para afirmar ter fé em seu poder, que declara: Por essa palavra […] o demônio já saiu de tua filha (Mc 7.29). O mesmo Senhor que elogia a fé elogia também os frutos e atos dela decorrentes A própria árvore consagra o fruto. Os atos de homem algum podem ser aceitáveis a Deus até que ele próprio seja aceito. No caso da mulher, tendo sido aceita, por sua fé, os resultados dessa fé logo se tomaram agradáveis ao coração de Jesus.

A mulher, também, conseguiu alcançar a bênção que buscava: o demônio já saiu de tua filha — e saiu para sempre. O que ela só precisou fazer, então, foi correr de volta para casa e encontrar sua filha na cama, descansando, tranquila, coisa que certamente a filha não fazia desde que o demônio dela se apossara. Ao lhe conceder a bênção de maior desejo em seu coração, nosso Senhor o faz de maneira grandiosa, dando-lhe uma espécie de carta branca, ao declarar: Seja-te feito como queres. Não conheço nenhuma outra pessoa que tenha recebido dele tal palavra: Seja-te feito como queres. Foi como se o Senhor da glória se rendesse, por opção própria, aos braços vitoriosos da fé de uma corajosa e humilde mulher. O Senhor concede a você e a mim, em todos os tempos da nossa luta, a capacidade de vitória total mediante a nossa fé. Nem podemos imaginar quão grande e precioso será o tesouro que receberemos quando o Senhor nos disser: Seja-te feito como queres.

O desfecho disso tudo é que essa mulher é uma lição para todos os excluídos. Para você; que se considera além da mais pálida esperança; para você, que não foi criado na casa de Deus e talvez tenha deixado de lado toda e qualquer fé em Deus quase a sua vida inteira. A pobre mulher cananeia era de Sidom; vinha de um povo que fora condenado a morrer muitos séculos antes, uma das sementes amaldiçoadas de Canaã. Contudo, apesar de tudo isso, tornou-se grande no reino dos céus, simplesmente porque creu. Não há motivo pelo qual aqueles que se imaginam fora da igreja de Deus não lhe ocupem o centro e venham a ser a luz mais ardente e brilhante de todas. O vocês, pobres proscritos e distantes, confortem-se e se fortaleçam, venham a Jesus Cristo e confiem a vida em suas mãos.

Essa mulher é antes de mais nada um exemplo para aqueles que pensam que têm sido rejeitados em seus esforços pela salvação. Você ora e, todavia, não tem sido bem-sucedido? Você busca o Senhor e, no entanto, se sente mais infeliz do que nunca? Você tenta se reformar e corrigir, crê estar agindo na força de Deus, mas tem fracassado? Confie naquele cujo sangue não perdeu a eficácia, cuja promessa não perdeu a validade e cujo braço não perdeu o poder para salvar. Agarre-se à cruz, pecador. Se a terra afundar debaixo de seus pés, mantenha-se nela agarrado. Se as tempestades rugirem e todos os rios se encherem, se o próprio Deus parece estar contra você, agarre-se à cruz de Cristo. Nela está a sua esperança. Nela você jamais há de perecer.

Essa é também uma lição para todo intercessor. A mulher não estava pedindo por si mesma; pedia por outra pessoa. Se você pedir por outro pecador, não o faça, jamais, com frieza de coração. Peça como se fosse por você mesmo, por sua própria alma, pelo seu próprio coração. Prevalecerá sobre Deus como intercessor o homem que carregar o problema de outrem no próprio coração, tomando-o como se fosse seu, rogando e regando com lágrimas uma resposta de paz como se a buscasse para si mesmo.

Por fim, lembremo-nos de que essa mulher poderosa, essa mulher gloriosa, é uma lição para toda mãe e todo pai, pois suplicava por sua filha. O amor materno, ou o paterno, torna o mais forte no mais fraco, e o mais corajoso, no mais tímido que seja. Mesmo entre as feras ou os pássaros, quão poderoso é esse amor! Um pobre pássaro, que se assusta à simples aproximação de passos, é capaz de se sentar valentemente sobre o ninho quando sente que um intruso se aproxima colocando seus filhotes em risco. O amor de mãe ou pai transforma uma pessoa temerosa em heroína, pelos filhos. Quando rogar a Deus por seus filhos, faça-o conforme seu amor materno ou paterno lhe sugerir, até que o Senhor também lhe diga: Grande é a tua fé! O demônio já saiu! Seja-te feito como queres. Deixo este último pensamento com os pais como encorajamento à oração. O Senhor os leve a fazer assim, em nome de Jesus. Amém.

SPURGEON, Charles H. Milagres e Parábolas de Nosso Senhor: A Obra e o Ensino de Jesus em 173 Sermões Selecionados. São Paulo: Ed. Hagnos, 2016, pp. 474–483.

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Luan Tavares
Luan Tavares

Written by Luan Tavares

“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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