O Caminho Simples do Homem para a Paz

Por C. H. Spurgeon

Luan Tavares
29 min readNov 30, 2020

Partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, que clamavam, dizendo: Tem compaixão de nós, Filho de Davi. E, tendo ele entrado em casa, os cegos se aproximaram dele; e Jesus perguntou-lhes: Credes que eu posso fazer isto? Responderam-lhe eles: Sim, Senhor. Então lhes tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo a vossa fé. E os olhos se lhes abriram. Jesus ordenou-lhes terminantemente, dizendo: Vede que ninguém o saiba (Mt 9.27–30).

Desejo lhes expor este acontecimento não para dele extrair ilustrações, mas com a finalidade de direcionar sua atenção para um único aspecto, o de sua extrema simplicidade. Existem nos Evangelhos vários casos e eventos referentes a cegos, em que participam destacadamente, como no episódio do lodo curativo feito por Jesus com terra e sua própria saliva, enviando o paciente a se lavar no poço de Siloé, além de muitos outros. Aqui, porém, a cura é extremamente simples: dois homens são cegos, clamam a Jesus, dele se aproximam, confessam sua fé e recebem visão imediata.

Em alguns casos de milagres realizados por Cristo, ocorreram circunstâncias de dificuldade. Em um deles, um homem é baixado por entre o telhado, seguro por quatro amigos. Em um segundo caso, uma mulher vai atrás de Jesus no meio da multidão e, com grande esforço, toca as vestes do Senhor. Lemos também sobre outro homem, que estava morto havia quatro dias e, por isso, a possibilidade de sair do túmulo era praticamente inexistente. No presente episódio, porém, navegamos em águas tranquilas. Aqui estão dois cegos, cientes de sua cegueira e confiantes de que Cristo lhes pode dar a visão. Clamam a Jesus, vão até ele, acreditam que ele seja capaz de lhes abrir os olhos e recebem visão na mesma hora.

Pode-se perceber que, neste caso, os elementos de simplicidade são: senso da cegueira e desejo pela visão. A partir daí, vem o clamor, o encontro com Cristo, a declaração aberta de fé e, então, a cura. Tudo muito sucinto. Não há detalhes nem quaisquer aspectos que possam sugerir ansiedade: a questão toda é simples por si mesma, e é a este assunto que quero me dedicar desta vez.

Existem casos de conversão que são tão simples quanto este da abertura dos olhos dos cegos. Não devemos duvidar da realidade da obra da graça neles presente apor causa da ausência de eventos singulares ou detalhes tocantes. Não devemos supor que uma conversão possa ser uma obra menos autêntica do Espírito Santo só pelo fato de ser extremamente simples. Que o Espírito Santo abençoe nossa meditação.

I. Para que o nosso sermão possa alcançar muitos, começarei fazendo um comentário. Em primeiro lugar, é fato indubitável que MUITAS PESSOAS ENFRENTAM SÉRIOS PROBLEMAS PARA PODEREM CHEGAR A CRISTO.

De fato, deve-se admitir que nem todos chegam a ele de maneira tão imediata como os dois cegos. Existem exemplos, registrados em biografias — muitos dos quais nos são conhecidos e, talvez, nosso próprio exemplo esteja entre eles — , em que chegar a Cristo foi uma questão de luta, esforço, decepção, longa espera e, por fim, uma espécie de desespero, por meio do qual somos forçados a chegar a Cristo. Na obra O peregrino, de John Bunyan, vê-se a descrição de como o personagem principal chega ao portão estreito: o personagem de nome Evangelista lhe aponta uma luz e um portão, e ele segue por aquele caminho de acordo com sua orientação. Já contei algumas vezes a história de um jovem escocês, de Edimburgo, que estava muito ansioso para falar a outras pessoas a respeito da alma delas. Assim, certa manhã, ele se dirigiu a uma senhora, uma velha peixeira de Musselburgh, e foi dizendo:

— Então, aqui está você com o seu fardo!
— É… — respondeu ela.
Ele então lhe perguntou:
— Já sentiu alguma vez o peso de um fardo espiritual?
— Sim — disse ela, um pouco mais à vontade — , eu sentia um fardo espiritual alguns anos atrás, antes de você nascer, mas me livrei dele. Só que eu não fiz como fez o Peregrino de Bunyan, não.

Nosso jovem amigo ficou bastante surpreso ao ouvir isso. Achou que ela deveria estar cometendo um grave erro e lhe pediu que explicasse.

— Bem — disse ela — , quando comecei a ficar preocupada com minha alma, ouvi um verdadeiro ministro do evangelho. Ele me mandou olhar para a cruz de Cristo, e então me livrei do meu fardo do pecado. Não dei ouvidos a esses pregadores água com açúcar, como o tal Evangelista de Bunyan.
— Como a senhora conseguiu fazer isso? — perguntou nosso jovem amigo.
— O Evangelista de Bunyan, quando se encontra com Cristão, o homem que traz um fardo nas costas, lhe diz: “Está vendo aquele portão estreito?” “Não”, diz Cristão, “ não vejo”. “Você vê aquela luz?” “Acho que sim”. Mas, afinal de contas — continuou ela — por que Evangelista fala com ele sobre portão estreito e luz, em vez de dizer: “Você vê Jesus Cristo pregado na cruz? Olhe para ele, e o fardo cairá dos seus ombros”? Evangelista manda aquele homem seguir pelo caminho errado quando diz que vá para o portão estreito, embora tenha feito bem em mandá-lo fazer isso. Do contrário, muito provavelmente ele teria se afogado rapidamente no pântano do desespero. Eu só vou lhe dizer uma coisa: eu olhei diretamente para a cruz, e o meu fardo se foi.
— Como assim? — indagou o rapaz. — Você nunca passou pelo pântano do desespero?
— Ah — respondeu ela — , muitas vezes, mais até do que me possa lembrar. Mas, logo da primeira vez que eu ouvi o pregador dizer “Olhe para Cristo”, olhei para ele. Tenho passado, é verdade, pelo pântano do desespero, mas, deixe-me lhe dizer uma coisa, moço: é muito mais fácil passar por esse pântano sem o fardo do que carregando um peso nas costas.

Realmente assim é. Bem-aventurados são aqueles cujos olhos estão voltados para o crucificado. Quanto mais velho fico, mais seguro estou disto: devemos cada vez mais deixar o nosso eu, em todos os aspectos, e olharmos para Jesus, se quisermos permanecer em paz.

Contudo, será que John Bunyan estava errado? Certamente que não; ele estava somente descrevendo as coisas de uma maneira geral. E aquela senhora, estava errada? Não, ela estava totalmente certa; estava descrevendo as coisas como devem ser e como é o nosso desejo que sempre fossem. Ainda assim, a experiência humana nem sempre é como deveria ser, e muitas das experiências dos cristãos não são, de modo algum, experiências cristãs. Um fato a lamentar, mas que temos de admitir, é que um grande número de pessoas, antes de chegar à cruz e ali deixar seu fardo, trilha caminhos os mais diversos, tentando aplicar esse ou aquele plano, alcançando pouquíssimo sucesso, em vez de chegar diretamente a Cristo como está, olhar para ele e encontrar imediatamente a luz e a vida. Mas qual é o motivo de muitos demorarem tanto para chegar a Cristo?

Primeiramente, respondo que, em alguns casos, é por ignorância. Talvez não exista outro assunto sobre o qual os homens sejam tão ignorantes quanto o evangelho. Não é ele pregado em centenas de lugares? Sim, graças a Deus, ele é, além de ser assunto de um sem-número de livros. Contudo, ainda assim, os homens não se achegam a ele: não conseguem descobrir o evangelho por si mesmos, nem ouvindo nem lendo sobre ele. É preciso haver o ensinamento do Espírito Santo, caso contrário o homem permanece na ignorância sobre tal simplicidade — a simplicidade da salvação pela fé. Os homens estão nas trevas e não conhecem o caminho; assim, vagueiam para lá e para cá e frequentemente dão voltas para encontrar um Salvador que está logo ali, pronto para os abençoar. Eles clamam: “Oh, se eu soubesse onde encontrá-lo!”, quando se simplesmente compreendessem a verdade veriam que sua salvação está bem perto deles, na tua boca, e no teu coração (Dt 30.14). Se com o coração cressem no Senhor Jesus e com a boca o confessassem, seriam salvos.

Em muitos casos, também, os homens são impedidos pelo preconceito. As pessoas crescem acreditando que a salvação deve ser alcançada por meio de atos e cerimônias humanos e, se não estiverem participando de rituais, acreditam que a salvação será então alcançada, de algum modo, por suas próprias obras. Muitas pessoas têm aprendido um tipo de evangelho meio a meio, parte lei e parte graça, e, assim sendo, estão presas sob um denso nevoeiro a respeito da salvação. Sabem que a redenção tem alguma relação com Cristo, mas também acreditam numa mistura. Não conseguem entender que Cristo é tudo ou nada. Têm uma leve noção de que são salvas pela graça, mas não compreendem que a salvação deve ser somente pela graça desde o início até o fim. Deixam de perceber que, para que a salvação possa ser realizada pela graça, basta ser recebida tão somente com fé, sem precisar de obras da lei, nem de poder sacerdotal humano, nem de rituais ou cerimônias, quaisquer que sejam. Como foram instruídas de que certamente é preciso fazer alguma coisa, as pessoas levam muito tempo até que se possam colocar sob a clara e abençoada luz da Palavra, onde os filhos de Deus veem Cristo e encontram a liberdade. “Creia e viva” é uma linguagem estranha para a alma convencida de que suas obras a levam a ganhar a vida eterna.

Para outras pessoas, o impedimento se dá simplesmente por mau ensinamento. Um ensinamento muito comum em nossos dias, bastante arriscado, é o de que o culto não faz distinção entre santo e pecador. Certas orações, usadas todos os dias, visam tanto a santos quanto a pecadores — são roupas pré-fabricadas, feitas para servir a todos e não adequadas especificamente a ninguém. Essas orações não se encaixam nem em santos nem em pecadores, por mais belas que sejam e grandiosas que possam parecer. Mas, sim, levam as pessoas a terem uma noção e ilusão de que estão em determinada condição entre salvas e perdidas — não totalmente perdidas, com certeza, mas também longe de serem santas. São crentes meio a meio, mestiços — uma espécie de antigo samaritano, que teme ao Senhor, mas serve também a outros deuses e espera ser salvo por um amálgama de graça e obras. De fato, é difícil, geralmente, levar os homens apenas à graça e apenas à fé: sua tendência é ficar com um pé no mar e outro em terra. Muitos ensinamentos lhes servem como boia, que os deixa flutuando na superfície, passando-lhes a ideia de que existe algo no homem e algo a ser feito por ele; não aprendendo, em consequência, que sua alma, na verdade, tem de ser salva por Cristo e não por si mesmos.

Além dessas condições, existe ainda o orgulho natural do coração humano. Não gostamos de ser salvos por caridade ou favor; temos de participar, de colocar nem que seja um dedo nessa massa. Sentimo-nos como que empurrados para um canto, cada vez mais afastados da autoconfiança, mas nos seguramos ferozmente pelos dentes, se não encontrarmos outro meio de o fazermos. Em terrível desespero, buscamos confiar somente em nós mesmos. Penduramo-nos pelos cílios a qualquer aparência de autoconfiança e não nos dispomos a abandonar essa confiança carnal se for possível segurá-la. Então, juntamente com nosso orgulho, surge a oposição a Deus, pois o coração humano, em geral, não ama facilmente a Deus e frequentemente mostra seu capricho opondo-se ao plano divino de salvação.

Não são todos os casos de inimizade a Deus por um coração não transformado que se revelam em pecado aberto; muitos, por meio de formação educacional humana, tornam-se pessoas morais e moralistas. Todavia, no fundo, detestam e hostilizam o plano da graça de Deus e até a própria graça, e é aí que seu ódio e amargor entram em cena. Contorcem-se de raiva nos bancos quando o pregador fala da soberania divina, odiando certamente o texto que diz que Deus terá misericórdia de quem lhe aprouver ter misericórdia, e terá compaixão de quem lhe aprouver ter compaixão (Rm 9.15). Falam dos direitos do homem decaído e de que todos devem ser tratados com igualdade. Quando, porém, a questão é a soberania divina e o fato de Deus manifestar sua graça de acordo com sua própria vontade absoluta, não conseguem suportar. Se, por acaso, “toleram” Deus, não o colocam devidamente no seu trono; e, se reconhecem sua existência, ainda que não como rei dos reis e Senhor dos senhores, que age como lhe agrada e que tem direito de perdoar ou não a quem ele desejar, então, “se é assim, se isso agrada a ele”, preferem perecer em sua culpa, rejeitando o Salvador. Tal coração não ama a Deus como Deus, conforme é revelado nas Escrituras, mas faz um Deus de si mesmo e proclama: Este é o teu Deus (Ne 9.18).

Em alguns casos, também, a luta do coração para chegar a Cristo surge de uma singularidade de conformação mental, devendo esses casos jamais serem considerados como regra, mas, sim, vistos como exceção. Tomemos, por exemplo, o caso de John Bunyan, ao qual já me referi anteriormente. Se você ler Grace abounding [Graça abundante], livro de Bunyan, verá que, por cinco anos ou mais, ele foi objeto do mais terrível desespero, tentado por Satanás, tentado por si mesmo, sempre levantando dificuldades contra ele próprio. Demorou muito, muito tempo mesmo, até que pudesse chegar à cruz de Cristo e encontrar a paz. No entanto, meu caro amigo, é bem improvável que tanto você quanto eu nos tornemos um escritor como John Bunyan; podemos nos tornar, no máximo, latoeiro, que era sua profissão, mas nunca escreveremos uma obra-prima como O peregrino. Podemos também imitá-lo em sua pobreza, mas é bastante provável que nunca nos igualemos à sua genialidade. Um homem dotado de uma tal imaginação, cheio de sonhos extraordinários, não nasce todo dia; e, quando surge, seu talento nem sempre significa um avanço na direção de uma vida tranquila. Purificada e santificada a imaginação de Bunyan, sua obra-prima pôde ser apreciada com suas maravilhosas alegorias. Contudo, enquanto não renovado e reconciliado com Deus, com tal mente tão singularmente formada, mas tão destituída de instrução, criado, como fora, na mais rude camada da sociedade, ele trazia consigo uma terrível carga de talento. Sua admirável fantasia teria operado nele uma extraordinária aflição se não tivesse sido controlada pelo Espírito divino. Não é admirável que, ao chegar um belo dia, seus olhos, velados em tão densa escuridão, pudessem suportar a luz, e que aquele homem passasse a considerar suas trevas ainda mais escuras quando a luz passou a brilhar sobre ele? Bunyan foi, assim, um homem único em seu gênero; não regra, mas exceção.

Você também, meu amigo, pode ser uma pessoa diferente. Existe uma grande possibilidade de que o seja. Eu o compreendo, pois eu mesmo me considero um tanto assim. Mas não imagine que existe uma lei que determine que todo mundo deva ser diferente. Se eu e você tivermos de andar por caminhos tortuosos, não quer dizer que todo mundo deva seguir nosso mau exemplo. Sejamos gratos a Deus pelo fato de que a mente de algumas pessoas é menos incomum ou malformada quanto a nossa e não estabeleçamos nossa experiência como padrão para as outras pessoas. Não há dúvida de que dificuldades podem surgir de determinada qualidade da mente com a qual Deus possa ter dotado alguns, ou ser natural uma depressão espiritual para outros, tornando-os peculiares por toda a sua vida.

Alguns existem, além disso, que não se achegam a Cristo, por causa de ataques de Satanás. Você se lembra da história do filho a quem o pai queria levar a Jesus, mas, quando ele vinha chegando, o demônio o derribou e o convulsionou (Lc 9.42). O espírito maligno, sabendo que o seu tempo era curto e seria expulso de sua vítima, o jogava no chão e fazia que se debatesse em epilepsia, deixando-o como morto. É isso o que o diabo faz com muitos. Lança-se sobre eles com toda a brutalidade de sua natureza maligna e emprega neles toda sua maldade, por temer que está prestes a ser expulso e não será mais capaz de tiranizá-los. Como disse Watts,

Busca a quem possa tragar
Com maligna alegria.

Contudo, se alguém se achegar a Cristo e o diabo não tiver mais permissão de investir contra tal pessoa; se se achegar a Cristo e não existir nada de diferente em sua experiência; se se achegar a Cristo e o orgulho e a oposição forem vencidos em sua natureza; se alguém se achegar a Cristo e não for ignorante, mas prontamente vir a luz — regozijemo-nos. É sobre isso, justamente, que vou falar agora com um pouco mais de profundidade.

II. Como acabamos de ver, não há dúvida de que muitas pessoas têm problemas para se achegar a Cristo. Todavia, ISTO NÃO É, DE MODO ALGUM, ESSENCIAL PARA UMA ENTREGA REAL E SALVADORA AO SENHOR JESUS CRISTO. Digo isso porque conheço homens cristãos abalados em seu coração porque receiam que se achegaram a Cristo muito facilmente. Ao olhar para trás, imaginam que não podem realmente ter-se convertido, porque sua conversão não foi acompanhada de angústia e tormento mental de que falam outras pessoas.

Devo primeiramente comentar que é muito difícil considerar de que maneira sentimentos de desespero possam ser essenciais para a salvação. Vamos pensar por um minuto. Existe alguma possibilidade de a descrença ajudar uma alma a chegar à fé? Não é verdade que a angústia que muitos experimentam antes de se achegarem a Cristo surge da realidade de sua descrença? Eles não confiam no Senhor, dizem mesmo que não podem confiar e, assim, são como o mar revolto que não pode descansar. Sua mente é jogada de um lado para o outro e extremamente fustigada por causa da descrença — seria isso uma base para uma santa confiança? Para mim, seria a coisa mais estranha do mundo se a descrença pudesse constituir preparação para a fé. Como se pode considerar que semear a terra com joio seja uma preparação para uma boa colheita de trigo? É possível considerar o fogo e a violência como colaboradores da prosperidade nacional? Um veneno mortal pode porventura ajudar a saúde? Não dá para entender. Parece-me melhor que a alma creia na Palavra de Deus de uma vez e muito mais provável que isto seja autêntico quando a alma convencida do pecado aceite o Salvador.

É este o caminho de Deus para a salvação, e ele exige que eu confie em seu Filho amado que morreu pelos pecadores. Entendo que Cristo é digno de confiança por ser o Filho de Deus, de modo que seu sacrifício tem de ser capaz de limpar o meu pecado. Sei também que ele entregou sua vida em lugar de seu povo e, portanto, confio nele de todo o coração. Deus pede que eu confie nele, e eu confio nele sem nenhum questionamento. Se Jesus Cristo satisfaz a Deus, ele certamente me satisfaz, e, sem fazer qualquer outra pergunta, achego-me a ele e me entrego a ele. Não lhe parece que esse tipo de atitude tem mais que ver com tudo o que deve ser necessário? É possível que um desespero intenso e alucinado possa ser de algum modo útil para levar à fé salvadora? Não vejo desse modo. Não penso assim.

Há pessoas que são assoladas pelos mais terríveis pensamentos. Imaginam que Deus não pode perdoá-las; ou que, mesmo que pudesse perdoá-las, não o faria, porque elas não fazem parte do grupo dos seus eleitos e redimidos. Embora tenham visto o convite do evangelho, escrito em letras de amor — Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei (Mt 11.28) — , arriscam questionar se encontrariam descanso se viessem, inventando suspeitas e conjecturas, algumas das quais chegando até mesmo à condição de blasfêmia contra o caráter de Deus e a pessoa do seu Cristo. De fato, creio que tais pessoas seriam perdoadas de acordo com as riquezas da graça divina, mas não posso imaginar que seus pensamentos pecaminosos as ajudem a alcançar o perdão. Tenho consciência de que meus próprios pensamentos obscuros sobre Deus — os quais deixaram cicatrizes em meu espírito — foram lavados juntamente com todos os outros pecados. Se havia qualquer bem nessas coisas, ou se posso olhar para trás em sua direção sem sentir vergonha e arrependimento, é coisa que não sei. Não posso ver a utilidade que possam ter para alguém. Será que um banho de tinta remove as manchas de uma pessoa? Pode o pecado ser removido se pecarmos mais? É impossível que o pecado possa adicionar graça e que o maior de todos os pecados, o pecado da incredulidade, possa ajudar alguém a se achegar à fé.

Contudo, repito mais uma vez, meus amigos, muitas dessas lutas e da perturbação interior que alguns têm experimentado são obra do diabo. Seria então essencial para a salvação que um homem estivesse debaixo da influência de Satanás? Haveria necessidade de o diabo ajudar Cristo? Seria absolutamente essencial que os dedos sujos do diabo estivessem em ação juntamente com as mãos imaculadas do redentor? Impossível. Este não é o meu julgamento em relação à obra de Satanás, e, penso eu, também não será o seu, se você analisar tudo isso. Se você nunca foi levado a blasfemar ou ficar desesperado por obra de Satanás, graças a Deus por nunca ter acontecido. Você nada teria ganhado com isso, mas seria, sim, um grande perdedor. Que ninguém queira imaginar que, caso tivesse sido presa de sugestões perturbadoras, sua conversão teria uma marca de autenticidade maior. Nenhum erro seria mais infundado do que este. Não há como o diabo ser de qualquer utilidade a qualquer um de nós. Ele só pode causar danos e nada mais do que isso. Toda flecha que lança fere e não cura. O próprio Bunyan diz, quando fala do seu personagem Cristão lutando contra Apoliom, que, embora ele haja alcançado a vitória, não era mais vencedor por causa disso. Seria melhor a um homem dar muitas voltas, caminhando aos trancos e barrancos, a entrar em conflito com Apoliom. Tudo o que é essencial para a conversão é encontrado no caminho mais simples de se chegar diretamente a Jesus. Devemos enfrentar todas as coisas a mais que vierem, mas certamente não devemos buscá-las. É fácil constatar como as tentações satânicas nos estorvam e como mantêm os homens presos a um fardo quando deveriam estar livres, mas é difícil dizer qual o bem que poderiam fazer.

Repetindo: muitos são os exemplos que comprovam que toda obra da lei, toda dúvida, todo temor, desespero e tormento por Satanás não são essenciais à salvação, pois existe um número incontável de cristãos que se achegaram direta e imediatamente a Cristo — como fizeram aqueles dois cegos — , mas, até os dias de hoje, muito poucos sabem a respeito disso. Eu poderia até chamar agora aqui à frente alguns irmãos, que certamente iriam declarar com sinceridade que, durante esta minha pregação sobre a experiência dos que têm vindo a Cristo com dificuldade, ficaram felizes que isso tenha sido pregado, mas que, na verdade, sentiram também algo assim: como “não sabemos que nada disso tenha acontecido em nossa experiência pessoal”. Tendo sido, provavelmente, ensinados desde a infância ou a juventude nos caminhos de Deus, instruídos por pais piedosos, eles se colocaram debaixo da influência do Espírito Santo bem no início de sua vida, ouviram que Jesus Cristo podia salvá-los, sabiam que queriam a salvação — e simplesmente foram até ele, devo assim dizer, quase tão naturalmente quanto iam até seu pai ou sua mãe sempre que tinham necessidade disso. Confiaram inteiramente no Salvador e encontraram imediatamente sua paz. Vários líderes desta igreja se achegaram ao Senhor desta maneira simples. Ontem mesmo, senti-me muito feliz pelos muitos que vi confessarem aqui a sua fé em Jesus, de uma maneira que me comoveu, muito embora sua experiência cristã tenha, certamente, poucos traços de terríveis queimaduras ou cicatrizes. Ouviram o evangelho, viram quão justo e apropriado era no seu caso e aceitaram sua salvação naquele mesmo momento, entrando imediatamente na paz e alegria que só Jesus proporciona. Observe que não estamos afirmando que existem poucos casos assim, mas estamos, pelo contrário, declarando com ousadia que conhecemos um grande número de exemplos como esses e que existem milhares de honrados servos de Deus, que andam em sua presença em santidade e que são eminentemente úteis ao próximo, cuja experiência de salvação foi tão simples como o bê-á-bá. Toda sua história pode ser resumida nestes versos:

Fui a Jesus como estava,
Abatido, triste e cansado.
Encontrei nele lugar de descanso
E por ele fui alegrado.

Vou ainda mais além, para garantir que muitos desses que dão as melhores evidências de que foram renovados pela graça não têm como contar sobre o dia em que foram salvos, nem atribuir sua conversão a apenas um único sermão, a determinado contexto das Escrituras ou a qualquer outro evento de sua vida. Não ousamos, porém, duvidar de sua conversão, pois sua vida prova esta verdade. Você pode ter em seu quintal muitas árvores sobre as quais há de admitir que não sabe quando foram plantadas; contudo, quando as vê cheias de frutos, não está nem preocupado quanto à data em que suas raízes começaram a se aprofundar. Conheço várias pessoas que não sabem a própria idade. Outro dia, estava falando com uma delas, que achava ser dez anos mais velha do que eu pensava que fosse. Eu só não lhe disse que era impossível que não estivesse viva, já que não sabia mais ao certo o ano de seu nascimento, porque, se o dissesse, teria rido de mim. No entanto, existem pessoas que duvidam de si mesmas que sejam realmente convertidas só porque não sabem ao certo a data de sua conversão. Se você confia no Salvador — se ele é a sua salvação e todo o seu desejo, e se sua vida é afetada por sua fé de tal modo que você produz frutos do Espírito, não tem com que se preocupar quanto a tempos ou épocas.

Milhares dos que estão no aprisco de Jesus podem perfeitamente declarar que estão nele, mas o dia em que passaram pela porta lhes é totalmente desconhecido. Milhares existem que vieram a Cristo não nas trevas da noite, mas no brilho do dia, e estes não têm como falar de estafantes esperas e vigílias, embora possam louvar e cantar a graça gratuita e o amor que vai até a morte. Chegaram com alegria à casa do Pai: a tristeza do arrependimento foi adoçada pela delícia da fé, que entrou no coração deles simultaneamente.

Eu sei que é assim. Estamos declarando a mais pura verdade. Muitos jovens chegam ao Salvador ao som de música suave. Da mesma maneira chegam muitos outros, de outra classe de pessoas, ou seja, gente de mente simples. Todos nós deveríamos desejar pertencer a essa classe. Pode ser que alguns eruditos se sentissem envergonhados de serem considerados símplices, mas eu me gloriaria. Muitos dos defensores do princípio da dúvida e da crítica são grandes criadores de confusão e grandes insensatos diante do próprio sofrimento. Enquanto os que se assemelham a crianças bebem o leite, esses críticos o analisam. Ao que parece, todas as noites, antes de ir para a cama, eles se desmontam, e tudo indica ser bastante difícil, na manhã seguinte, que consigam se montar novamente. Para algumas mentes, a coisa mais difícil do mundo é acreditar em uma verdade por si só evidente. Se puderem, esses críticos levantam sempre poeira e névoa, complicando as coisas para si mesmos; se não for assim, não ficam satisfeitos. De fato, nunca têm certeza alguma até que estejam incertos e nunca se acalmam até que fiquem perturbados. Benditos são os que creem que Deus não pode mentir e têm bastante certeza de que deve ser assim porque Deus o disse. São esses que se lançam em Cristo quer afundem quer nadem, porque, se a salvação de Cristo é o caminho de Deus para salvar o homem, deve ser o caminho correto, e, sendo assim, o aceitam. Eu lhes digo que muitos chegaram a Cristo dessa maneira.

Agora, indo um pouco mais adiante, tudo o que é essencial para a salvação está na maneira simples, agradável e feliz de se chegar a Jesus, tal como você o fez. O que é essencial? Primeiro, arrependimento. Nossos queridos irmãos que chegam a Cristo, embora não sintam remorso, detestam o pecado, que um dia amaram. Embora hajam conhecido o horror do inferno, sentem, o que é pior, o terror do pecado. Apesar de jamais terem tremido diante da forca, o crime é para eles mais horrendo que o juízo final. São ensinados pelo Espírito de Deus a amar a justiça e a buscar a santidade, e esta é a própria essência do arrependimento. Aqueles que têm chegado a Jesus dessa maneira certamente alcançam a verdadeira . Não trazem consigo nenhuma experiência em que confiar, mas, sim, são mais plenamente levados a descansar naquilo que Cristo sentiu e fez. Não descansam em suas próprias lágrimas, mas no sangue de Cristo; não em suas próprias emoções, mas na aflição de Cristo; não em sua própria consciência de ruína, mas na certeza de que Cristo veio para salvar todos aqueles que nele confiam. Possuem a fé do tipo mais puro.

Observe-se também que, sem dúvida, possuem amor. A fé […] opera pelo amor (Gl 5.6), e eles mostram isso. Parece até, geralmente, que, antes de tudo, têm mais amor do que aqueles que carregam o mais horrível fardo e se encontram abatidos pela tempestade, pois, na quietude de sua mente, possuem uma visão mais correta das coisas belas do Salvador. Mostram-se inflamados de amor por ele e começam logo a servi-lo, enquanto outros ainda estão tendo suas feridas saradas e procurando fazer que seus ossos partidos se regozijem.

Claro que não pretendo depreciar as experiências dolorosas. Quero apenas mostrar que essa segunda categoria — a da vinda simples a Cristo, semelhante a como os homens cegos vieram, na sua fé simples de que ele poderia lhes dar a visão — não é nem um pouco inferior à outra, contando, em si, com tudo aquilo essencial à salvação.

Em seguida, vamos perceber que o mandamento do evangelho não implica, em si mesmo, nada daquilo que alguns hajam experimentado. O que Deus nos ordena pregar aos homens? “Sê arrastado pelo diabo e serás salvo”? Não, mas, sim: Crê no Senhor Jesus e serás salvo (At 16.31). Qual a minha tarefa, neste momento? Dizer a você “desespera e serás salvo”? Certamente que não, mas, sim, “crê e serás salvo”. Deveríamos ter vindo aqui para lhe dizer: “Torture-se; mutile o seu coração, açoite o seu espírito, moa sua própria alma em desespero”? Não, mas, sim: “Creia na infinita bondade e misericórdia de Deus na pessoa de seu Filho amado; venha a ele e confie nele”.

É este o mandamento do evangelho. Ele é colocado de várias formas. Eis uma delas: Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os confins da terra (Is 45.22). Se fosse para chegar aqui e dizer “arrancai os vossos olhos”, isto não seria o evangelho, seria? Não; mas, sim, “olhai”. O evangelho não diz “chore, derrame lágrimas dos seus olhos”, mas, sim, “olhe”. Não diz “cegue os seus olhos”, mas, sim, “olhe”, “olhe”, “olhe”. É simplesmente o oposto a qualquer coisa como remorso, desespero e pensamento blasfemo. É, simplesmente, “olhe”.

Isso é ainda apresentado de outra maneira. Pelo que ouvimos, devemos tomar da água da vida à vontade; somos conclamados a beber da fonte eterna do amor e da vida. Que deveríamos fazer? Tornar essa água tão quente a ponto de nos queimar? Não. Devemos bebê-la fresca, da maneira que ela flui livremente da fonte. Deveríamos fazer, como faziam na Inquisição, com que caísse gota a gota de cada vez, e então mentir, jurando sobre ela, ao sentir esse gotejamento torturante, contínuo e escasso? Nada disso. Devemos simplesmente achegar-nos à fonte, beber bastante dessa água e nos satisfazermos com ela, que ela irá saciar a nossa sede.

Mais uma vez: o que é o evangelho? Não é comer do pão do céu? Comei o que é bom. (Is 55.2). Eis aqui o banquete do evangelho, e devemos impelir os homens a irem até ele. E o que devem fazer quando a ele chegarem? Olhar silenciosamente enquanto outros comem? Ficar de pé e esperar até que tenham muitíssima fome? Tentar um jejum de quarenta dias, tal qual já tentaram alguns? Nada disso. Você pode até pensar nisso como sendo evangelho, tal como algumas pessoas o pregam e agem, mas o evangelho não é assim. O que você tem a fazer é se regozijar em Cristo imediatamente; não precisa jejuar até se transformar em um esqueleto ambulante para então chegar a Cristo. Não fui enviado com tal mensagem, mas, sim, com uma palavra de bom ânimo: Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom e deleitai-vos com a gordura. […] Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite (Is 55, v. 2 e v. 1). Pegue à vontade aquilo que Deus lhe dá à vontade e apenas confie no Salvador. Não é isso o evangelho? Então, por que qualquer um de vocês deveria dizer “eu não posso confiar em Cristo porque não sinto isso ou não sinto aquilo”? Não lhes estou garantindo solenemente que conheço muitos que chegaram a Cristo como estavam, que nunca haviam passado por sentimentos horríveis dos quais se fala tanto e, ainda assim, foram verdadeiramente salvos? Venha como você está. Não tente criar retidão a partir da sua impiedade, nem confiança a partir de sua descrença, nem um Cristo a partir de suas blasfêmias, como alguns parecem fazer. Não fique louco tentando imaginar em vão que tipo de desespero possa servir como fundamento para a sua esperança. Não há desespero algum que o possa fazer. Você deve é sair de si mesmo e ir até Cristo; ali, você estará seguro. Tal como responderam os cegos quando Cristo lhes perguntou Credes que eu posso fazer isto?, você deve lhe responder: “Sim, Senhor”. Entregue-se inteiramente ao seu Salvador, e ele será o seu Salvador.

III. Concluo com mais uma observação: a de que AS PESSOAS PRIVILEGIADAS POR VIREM A JESUS DE MANEIRA TRANQUILA, AGRADÁVEL E FELIZ NÃO SÃO DE MODO ALGUM PERDEDORAS. Elas perdem alguma coisa, sim, mas não de grande valor. Perdem algo de apenas pitoresco e têm menos coisas para contar. Quando uma pessoa passa por uma série de provações que procuram afastá-la de Cristo e, finalmente, chega ao Senhor como um navio avariado que atraca no porto, tem quase sempre muito o que falar e escrever e talvez ache interessante poder contar tudo isso. Se puder fazê-lo para a glória de Deus, é bastante adequado que o faça. Muitas dessas histórias se encontram em biografias, por serem incidentes que despertam o interesse alheio e fazem que uma vida seja digna de ser relatada. Mas não se deve concluir, por isso, que todas as vidas piedosas sejam semelhantes. Bem-aventurados são aqueles cujas vidas não precisam ser escritas, porque os protagonistas estão satisfeitos e felizes demais com a vida tranquila que levam. Vidas das mais favorecidas nunca foram relatadas por escrito porque não há nada de pitoresco ou curioso demais em relação a elas.

Eu lhe pergunto o seguinte: quando aqueles homens cegos vieram a Jesus como estavam e disseram que eles acreditavam que ele poderia lhes abrir os olhos — e o que ele, de fato, fez — , não há em sua história o necessário e bastante de Cristo que deveria haver? Os homens se encontram ali em destaque, sim, mas é o Mestre da cura que se acha em primeiro plano. Mais detalhes, provavelmente, excluiriam a preeminência peculiar que ele tem de ter em tudo. Ali está ele, o bendito e glorioso abridor dos olhos de dois homens cegos. Ali está ele, somente ele, e o seu nome é glorioso! Houve também uma mulher, que gastara todos os seus recursos com médicos sem conseguir melhorar e, pelo contrário, piorava cada vez mais. Essa mulher tinha muita história para contar sobre os vários médicos a quem havia procurado. Mas não sei realmente se a narrativa das suas muitas decepções glorificaria o Senhor Jesus de alguma forma, além do que é feito quando os dois homens cegos, curados, puderam depois contar a história deles: “Nós ouvimos falar dele, fomos até ele e ele abriu os nossos olhos. Nunca gastamos uma moeda sequer com médicos. Fomos direto a Jesus, tal qual estávamos, e tudo o que ele nos disse foi ‘vocês acham que eu posso fazer isso?’, e nós dissemos ‘sim, nós cremos que tu podes’. Então, ele nos abriu os olhos imediatamente. Foi isso o que aconteceu”. Oh, se a minha própria experiência pessoal pudesse ser colocada sob a luz do Mestre, de nada valeria, por maior que fosse! Que Cristo seja sempre o primeiro, o último, o do meio — vocês não dizem o mesmo, meus irmãos?

Se você, pobre pecador, vier a Cristo de uma vez por todas, sem ter nada o que falar; se for simplesmente um zé-ninguém que está se acercando do bendito Tudo; se for simplesmente um nada que se achega àquele que é Tudo em todos; se for um amontoado de pecados e miséria, um grande vácuo, nada além de um vazio que não é digno de qualquer menção, se vier e se entregar à sua graça infinitamente gloriosa, isto será plenamente suficiente. Parece-me que você nada irá perder por nada existir de pitoresco ou sensacional em sua experiência. Haverá, somente, uma grande sensação — a de perdido em si, mas salvo em Jesus. Glória seja dada ao seu nome!

Talvez você imagine que pessoas que venham assim tão tranquilamente percam alguma coisa mais tarde. “Ah”, disse-me alguém certa vez, “eu quase tenho desejado, às vezes, ter sido um transgressor, que pudesse sentir uma grande mudança no meu caráter. Isso porque, tendo sido sempre uma pessoa de moral desde a minha juventude, nem sempre sou capaz de ver qualquer marca distintiva de mudança, com a salvação”. Todavia, esta forma de evidência, meus amigos, é de pouco uso nos meios das trevas, pois, se o diabo não puder dizer a um homem salvo “você não mudou de vida” — e existem alguns aos quais ele não teria o descaramento de dizer isso, já que a mudança é por demais manifesta para que possa negá-la — , ele dirá, certamente: “Você mudou suas atitudes, mas seu coração ainda é o mesmo. Você deixou de ser um pecador audacioso e honesto para ser um hipócrita professo e carola. Isso é tudo o que você fez; você abdicou do pecado declarado porque as suas fortes paixões declinaram ou porque achou que gostaria de ter outra maneira de pecar. Agora, você está apenas exibindo uma falsa crença, vivendo muito longe daquilo que gostaria de fazer”. Não é nada confortável ser considerado fora da mudança que a conversão deveria realizar quando é o arqui-inimigo o nosso acusador. Todavia, independentemente de como você veio a Cristo, nunca poderá colocar a sua confiança em como você veio; sua confiança deve estar inteiramente, sempre, naquele a quem você veio — ou seja, em Cristo — , quer você tenha vindo a ele voando, quer correndo, quer caminhando. Se você chegar a Jesus, seja de que modo for, está certo. O importante não é como você vem, mas, sim, que você venha a ele. Você já veio a Jesus? Se já veio, mas está em dúvida se o fez, venha de novo, mais uma vez.

Além disso, jamais discuta com Satanás sobre a questão de você ser ou não um cristão. Se ele lhe disser que você é um pecador, responda apenas: “Realmente, eu sou, mas Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, e eu vou começar de novo”. O diabo é como um velho advogado experiente, você sabe, e, por ser ardiloso, sabe como nos iludir, já que não compreendemos de imediato algumas coisas tão bem quanto ele. Ele está metido nesse negócio dele, de procurar fazer os cristãos duvidarem do seu interesse por Cristo, já por muitos e muitos anos, e entende muito bem desse assunto. Não lhe dê maior atenção. Fale a ele a respeito do seu Advogado. Diga-lhe que você tem um Advogado nas alturas, que irá dar a ele a resposta completa. Diga-lhe simplesmente que você vai a Cristo: se você nunca foi a Jesus antes, irá agora; se já foi antes, irá outra vez. Esta é a maneira certa de encerrar a discussão. Quanto às evidências: elas são boas quando o tempo está bom; quando há tempestade lá fora, o sábio abre mão das evidências. A melhor evidência que um homem pode ter de que é salvo é que ele se apega a Cristo.

Por fim, alguns poderiam achar que aqueles que vêm a Cristo de maneira tranquila possam perder um pouco no processo de adaptação de serem úteis mais tarde, porque não seriam capazes de compreender outros que se encontrem diante de profundas perplexidades ou em situações terríveis quando prestes a chegar a Cristo. Na verdade, existe uma grande quantidade de pessoas entre nós que realmente pode se identificar com esses angustiados; eu não sei dizer se todo mundo é capaz de se identificar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. Lembro-me de certo dia haver mencionado a um homem de muitas posses que o pobre pastor de sua igreja tinha uma grande família e mal podia manter um casaco sobre seus ombros. Disse-lhe que ficava admirado de ver como alguns cristãos prosperavam sob o ministério daquele homem e não supriam suas necessidades. Ele me respondeu que achava que fosse bom que os pastores fossem pobres, porque poderiam se identificar com os pobres. “Sim, sim”, respondi, “mas então o senhor há de convir que é preciso haver também uns dois ou três pastores que não sejam pobres, para poderem se identificar com aqueles crentes que são ricos”. É claro que o pobre pastor tem, de vez em quando, o poder de se identificar com ambas as classes. Mas aquele homem parece não ter entendido a minha argumentação, embora eu ache existir algum valor nela. Nesse caso, é bom termos entre nós irmãos que, por meio de sua dolorosa experiência passada, possam se identificar com aqueles que passem pela mesma dor. Mas não acha que é muito bom também ter outros irmãos que, mesmo não tendo passado por essa experiência, possam se voltar para aqueles que não passem por ela? É bom que tenhamos quem possa dizer: “Não se perturbe com o fato de o cão do inferno latir ou não latir para você. Se você passou pelo portão de maneira calma e tranquila e Cristo o recebeu, não se preocupe com o fato de o diabo ter ou não latido para você, pois eu também cheguei a Jesus de maneira tão calma, segura e doce como você”. Tal testemunho irá confortar a pobre alma e, assim, se você parece não ter o poder de se identificar de uma maneira, terá o poder de se identificar de outra, e, desse modo, não haverá perda.

Para resumir, pediria que todo homem, toda mulher e toda criança aqui se achegassem e confiassem no Senhor Jesus Cristo. Parece-me que o plano de salvação é inigualável, pois a parte de Cristo foi tomar sobre si o pecado humano e sofrer no lugar do pecador, enquanto a nós não cabe nada mais do que simplesmente aceitar aquilo que Cristo fez e nos entregarmos completamente a ele. Àquele que não for salvo por um plano como este, só resta perecer, e é isso o que acontecerá. Já houve algum evangelho tão doce, seguro e direto como este? É uma alegria pregá-lo. Você vai recebê-lo? Queridas almas, vocês não desejam abdicar de tudo para ser nada e ter Jesus, para que ele seja tudo em todos?

Que Deus não permita que nenhum de nós rejeite este caminho de graça, este caminho aberto, este caminho seguro. Venha, não demore mais. O Espírito e a noiva dizem “vem”. Senhor, que tu os atraias ao amor de Jesus. Amém.

SPURGEON, Charles H. Milagres e Parábolas de Nosso Senhor: A obra e o Ensino de Jesus em 173 Sermões Selecionados. São Paulo: Ed. Hagnos, 2016, pp. 19–28.

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Luan Tavares
Luan Tavares

Written by Luan Tavares

“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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