O Banquete de Satanás
Charles H. Spurgeon
Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho (Jo 2.9,10).
O mestre-sala disse mais do que pretendia dizer, ou seja, existe mais verdade naquilo que ele disse do que ele mesmo poderia ter imaginado. Esta é a regra estabelecida para o mundo, pelo mundo: “Primeiro o vinho bom; quando todos estiverem bêbados, que venha então o vinho ruim”. Esta é a norma em vigor entre os homens — e, por acaso, por causa dela, já não choraram centenas de corações decepcionados? Primeiro, amizade — palavras brandas e mais derretidas que manteiga; depois, a espada desembainhada. Aitofel apresenta primeiro a Davi a nobre iguaria do amor e da bondade; depois, o que havia de pior, pois abandona seu senhor para se tomar conselheiro do filho rebelde do rei. Judas também apresenta, antes, o vinho do discurso certo e da bondade. O Salvador participa dele enquanto Judas caminha para a casa de Deus na companhia do Senhor, recebendo do discípulo doce acolhimento aos seus conselhos. Depois, vem a borra do vinho — O que comia do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar (Jo 13.18). Judas, o ladrão, trai seu mestre trazendo “então o inferior” dos vinhos.
Você, certamente, já passou por isso com muitas pessoas que considerava como seus amigos leais. No apogeu da prosperidade, quando brilhava o sol, os pássaros cantavam e tudo estava indo bem com você, ofereciam-lhe o bom vinho. Mas chegou um vento frio que queimou suas flores; as folhas caíram das árvores; seus rios foram congelados pelo gelo; veio tudo de pior — então, se esqueceram de você, fugiram; o abandonaram na hora do perigo e lhe ensinaram aquela grande verdade: Maldito o varão que confia no homem, e faz da carne o seu braço (Jr 17.5). E assim no mundo, no mundo inteiro — e não apenas entre os homens, até mesmo na natureza.
Quem dera a terra fosse
o que deveria ser e nada mais.
Pois não é exatamente isso o que a vida neste mundo nos oferece? Em nossa juventude, ela nos traz o melhor vinho. Temos os olhos brilhantes e os ouvidos afinados para a música. O sangue flui nas veias, e o pulso bate com alegria. Mas, espere um pouco e, no final, vem tudo aquilo que é considerado inferior — no dia em que tremerem os guardas da casa, e se curvarem os homens fortes, e cessarem os moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que olham pelas janelas, e as portas da rua se fecharem; quando for baixo o ruído da moedura, e nos levantarmos à voz das aves, e todas as filhas da música ficarem abatidas; como também quando temerem o que é alto, […] o gafanhoto for um peso, e falhar o desejo e os pranteadores andarão rodeando pela praça (Ec 12.3–5). Primeiro, o transbordar do cálice da juventude; depois, as águas estagnadas da idade avançada, a não ser que Deus jogue naquela borra de vinho o sangue fresco de sua graça e de sua tema misericórdia, de modo tal que, como sempre acontece ao cristão, o cálice possa transbordar e, mais uma vez, borbulhar de vida e alegria. O cristão, não confie nos homens; não confie nas coisas do tempo presente, pois assim vivem os homens e o mundo — põem “primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior”.
Nesta manhã, porém, quero lhes apresentar duas casas em festa.
Peço-lhes, então que, primeiro, olhem para dentro da casa do diabo — e verão que ele segue à risca essa regra. Serve sempre antes o vinho bom e, quando todos os homens já estão embriagados, quando seus cérebros se encontram entorpecidos com a bebida, oferece o que é de qualidade bem inferior. Depois de ter pedido que você olhe para isso e ter estremecido e atentado para a grave advertência aí contida, pedirei que entremos na casa do banquete do nosso amado mestre e Senhor Jesus Cristo; e a ele podemos dizer o mesmo que o mestre-sala disse ao noivo: Tu guardaste até agora o bom vinho (Jo 2.10).
I. Para começar, lancemos nosso olhar de advertência na direção da CASA DE FESTA QUE SATANÁS CONSTRUIU: assim como “a sabedoria já edificou a sua casa, já lavrou as suas sete colunas”, do mesmo modo a insensatez tem seu templo, sua taverna, para onde tenta levar continuamente os incautos. Olhe para essa casa de banquete, e eu lhe mostrarei quatro mesas e os convidados que ali estão, sentados. Ao olhar aquelas mesas, poderá observar como é o procedimento naquele lugar. Verá copos de vinho sendo trazidos e levados, um atrás do outro, e perceberá que uma regra se cumpre nessas mesas: primeiro o vinho bom e depois o inferior — eu direi mais ainda, o que é o pior de todos.
Na primeira mesa, para a qual chamo sua atenção, mas desejando que você jamais se sente nem beba ali, está sentado o homem DEVASSO. A mesa do devasso é ruidosa e alegre; está coberta de uma toalha vermelha muito enfeitada, e todas as taças sobre ela parecem bastante brilhantes e reluzentes. Muitos são os que ali se sentam, sem saber que são convidados ao inferno e que o final de toda aquela festa será nas profundezas da perdição. Consegue ver o dono da festa, que chega? Traz um sorriso gentil na face; suas roupas não são negras, mas, sim, multicoloridas; traz uma palavra muito adocicada nos lábios e uma magia tentadora no brilho de seus olhos. Oferece uma taça, convidando: “Beba aqui, meu jovem; a bebida que está borbulhando na taça é excelente. Vê esta taça? É a taça do prazer”. É a primeira taça oferecida na casa de banquete de Satanás. O jovem a toma nas mãos e sorve seu líquido. No início, um gole cuidadoso; toma só um pouco e depois se abstém. Não deseja fazer muitas concessões à luxúria, não pretende mergulhar na perdição. Existe uma flor à beira daquele abismo: ele quer esticar a mão e colher aquela flor, mas não é sua intenção pular do penhasco e se autodestruir. Não! O jovem acha, na verdade, que é fácil deixar de lado a taça depois de haver provado seu sabor! Ele não tem planos de se entregar à bebedeira. Toma então só mais uma pequena dose na taça. Oh, mas quão doce é! Aquilo faz seu sangue se agitar dentro dele. “Que tolo fui por não ter provado isso antes!”, pensa então. Já teria ele sentido por acaso tal prazer assim? Poderia imaginar que seu corpo fosse capaz de ser levado a tamanho êxtase como este? Bebe mais e, dessa vez, o gole é maior, e o vinho esquenta em suas veias. Ah, como se sente feliz! O que não diria agora em louvor a Baco, a Vênus, ou qualquer outra forma que Belzebu escolha assumir? Toma-se o próprio conclamador de louvor ao pecado! E uma coisa bela, agradável, parecendo a profunda danação da luxúria ser tão alegre e prazerosa quanto um arrebatamento do céu. Bebe, bebe, bebe mais uma vez, até que seu cérebro começa a se enrolar pela intoxicação produzida pelo prazer pecaminoso. Isso é só o começo. Bebam, coloquem sobre sua cabeça a vaidosa coroa dos bêbedos de Efraim (Is 28.1) e nos chamem de tolos por afastarmos de nós essa taça; bebam com as prostitutas, sorvam a bebida com os devassos. E possível que vocês se considerem muito sagazes em fazer isso; mas saibam que depois disso vem algo pior, pois seu vinho é vinho dos campos de Sodoma e Gomorra, suas uvas são uvas de fel, de cachos amargos; seu vinho é peçonha de víboras e veneno de dragões.
Agora, com um olhar de soslaio, o sutil dono da festa se levanta de seu lugar. Sua vítima já teve o suficiente do vinho bom. Retira então aquela taça e lhe oferece outra, não tão borbulhante. Veja este líquido: não está ornamentado com as bolhas do arrebatamento; é raso, pesado, insípido. E a chamada taça da saciedade. O homem já teve prazer suficiente e, tal qual um cão, vomita, mas, tal qual um cão, voltará outra vez ao próprio vômito. Quem sente enjoo? Quem tem vermelhidão nos olhos? Aquele que se detém tomando esse vinho. Estou falando de maneira figurada, mas também de maneira literal. O vinho da luxúria traz a mesma vermelhidão nos olhos. O devasso logo constata que todas as rodadas de prazer terminam com sua saciedade. E se questiona: “E aí? O que mais eu poderia fazer? Já cometi todo tipo de devassidão que se possa imaginar, já bebi todas as taças do prazer. Deem-me alguma coisa nova! Já frequentei todos os bares e cabarés; não tenho mais o menor interesse em qualquer um deles. Busquei todo tipo de prazer que pude conceber. Tudo se acabou. Minha própria alegria está cada vez mais rara e embotada. O que hei de fazer?”
E esta a segunda parte do banquete do diabo — a saciedade: um torpor vacilante, resultado de excesso anterior. Milhares há que continuam bebendo da taça insossa da saciedade todos os dias. Seria para eles maravilhoso terem uma nova inventiva qualquer por meio da qual pudessem matar o tempo vazio; obter uma nova descoberta que conseguisse dar um novo ar à sua iniquidade. Se alguém lhes pudesse descobrir uma nova impiedade, alguma profundidade maior no mais entranhado inferno da lascívia, seriam capazes de bendizer seu nome por lhes haver dado novo “ânimo” com alguma coisa para eles nova.
Esta segunda taça servida pelo diabo — você consegue perceber quem são os que dela participam? Na verdade, há aqui, esta manhã, alguns de vocês que têm bebido uma grande dose dela. São como que uma mula cansada do demônio da luxúria, seguidores frustrados do prazer, no qual jamais se pode confiar. Só Deus sabe que, se você pudesse revelar o que está no seu coração, seria levado a dizer: “Puxa! Provei todo o prazer e não o acho mais prazeroso; já andei por aí e hoje estou que nem cavalo cego preso à roda do moinho, pois não consigo parar de girar e girar mais uma vez. Estou inteiramente fascinado pelo pecado, mas não consigo mais me alegrar nele como no passado, pois toda a glória dele é como a flor que murcha e morre e como o fruto que amadurece e cai antes do tempo”.
Por algum tempo, o convidado permanece chafurdado no pútrido mar de sua louca paixão. Mas eis que, então, outra cena se apresenta. O dono da festa ordena que mais outro barril de bebida seja aberto. Desta vez, segura uma taça negra, que oferece com os olhos cheios do fogo do inferno, faiscando de feroz maldição. “Beba isso”, diz ele. O homem, então, sorve o líquido, mas se assusta e exclama: “Deus me livre de beber isso!” Mas você terá de beber! Aquele que bebe o primeiro copo deve beber o segundo e o terceiro. Beba, embora seja como fogo descendo pela sua garganta! Beba, embora seja como a lava de um vulcão nos seus intestinos! Beba! Você tem de beber! Aquele que peca acabará sofrendo; aquele que é devasso em sua juventude terá a podridão em seus ossos e a doença em seus lombos, na maturidade. Aquele que se rebela contra as leis de Deus fará a colheita em seu próprio corpo.
Sim, há coisas terríveis que lhes devo dizer sobre a terceira taça dessa bebedice. A casa de Satanás tem uma antessala repleta de tudo aquilo agradável aos olhos e fascinante ao gosto dos sentidos. Mas há também uma sala dos fundos, que ninguém conhece e da qual ninguém viu todos os horrores. Ali, há uma câmara secreta, de onde o inimigo enterra as criaturas que ele mesmo destruiu. Uma câmara debaixo da qual está o calor do inferno. Em cima de suas tábuas, é possível sentir o terrível calor daquele poço. Um médico talvez tivesse mais condições do que eu de narrar os horrores que muitos vêm a sofrer como resultado de sua iniquidade. Deixarei isso de lado; todavia, deixe-me advertir ao pródigo devasso que a pobreza que irá enfrentar será o resultado da prodigalidade de seu pecado. Que ele saiba, também, que o remorso na consciência que irá cair sobre ele não é acidental nem desce por acaso dos céus, mas, sim, é uma consequência direta da própria iniquidade, pois o pecado leva em suas entranhas a miséria e, mais cedo ou mais tarde, dá à luz esse seu terrível produto. Se semeamos, iremos colher o fruto. A lei da casa do inferno é essa: Primeiro o vinho bom e […] então o inferior (Jo 2.10).
Resta apresentar o último item. Preste atenção agora, ó jovem seguro, que não dá muito valor às advertências que lhe entrego, com voz fraterna e coração afetivo, embora em linguagem dura. Beba esta última taça. Pois o pecador será levado, por fim, a colocar-se ante o túmulo. Suas esperanças e alegrias se foram, como ouro em pó colocado em um saco furado e que terminou se perdendo — para sempre. Agora, que chega ao final, seus pecados o assombram e suas transgressões o deixam perplexo; está preso, como um touro numa rede — como escapará? Morre e desce, da doença, para a condenação. Seria possível à linguagem mortal descrever os horrores dessa última e terrível taça, da qual deve o devasso beber, e beber para sempre? Olhe para a taça. Você não pode ver a sua profundidade, mas dê uma olhada em sua superfície fervilhante. Ouça o ruído da agitação, o som de ranger dos dentes e o queixume das almas desesperadas. Olho para essa taça e ouço uma voz vinda de suas profundezas: “Isto só terminará com a punição eterna”; pois uma fogueira está, de há muito, preparada; […] a sua pira é fogo, e tem muita lenha; o assopro do Senhor como torrente de enxofre a acende (Is 30.33). O que você me diz sobre essa última parte do banquete de Satanás? Quem dentre nós pode habitar com o fogo consumidor? Quem dentre nós pode habitar com as labaredas eternas? (Is 33.14).
Ó devasso! Eu lhe imploro, em nome de Deus, fuja dessa mesa! Não seja tão indiferente para com as suas taças; não seja inerte e seguro na falsa paz que você hoje desfruta! Veja homem! A morte está à sua porta, e aos seus pés se encontra uma repentina destruição. Quanto a você, que um dia esteve sob a orientação de um pai cuidadoso e a vigilância de uma mãe esperançosa, rogo que se afaste da casa do pecado e da insensatez. Que as palavras do sábio possam ser inscritas em seu coração e você nelas medite na hora da tentação: Afasta para longe dela [da mulher licenciosa,] o teu caminho, e não te aproximes da porta da sua casa (Pv 5.8). Porque os lábios da mulher licenciosa destilam mel, e a sua boca é mais macia do que o azeite; mas o seu fim é amargoso como o absinto, agudo como a espada de dois gumes. Os seus pés descem à morte; os seus passos seguem no caminho do Seol (Pv 5.3–5).
2. Dá para ver aquela outra mesa, um pouco mais para lá, no meio do palácio? Ah, almas despreocupadas! Muitos de vocês julgam que jamais irão à festa do inferno, e, no entanto, ali está uma mesa esperando por vocês também. Está coberta com uma bonita toalha branca, e todas as taças sobre a mesa são as mais brilhantes e atraentes. O vinho não se parece com o vinho de Gomorra; parece ser bom, como o vinho tirado das uvas de Escol. Não parece ter qualquer efeito intoxicante; é como o vinho, ou sumo, de antigamente, que era espremido diretamente da uva na taça, não possuindo em si mesmo nenhum veneno mortal Você consegue ver os homens sentados àquela mesa? Como estão felizes consigo mesmos! Pergunte aos demônios que, vestidos de branco, servem essa mesa, e eles dirão do que se trata: “Esta é a mesa da justiça própria: é o fariseu quem se assenta ali. Você deve conhecê-lo; ele tem seus filactérios atados na testa, bem no meio dos olhos, e a orla do seu manto é bem extensa. E considerado o melhor dos melhores professores”. Enquanto puxa uma cortina, encobrindo a mesa onde os devassos estão se embebedando, Satanás diz: “Fiquem quietos; não façam tanto barulho para que esses santarrões hipócritas não percebam em companhia de quem estão. Essa gente cheia de justiça própria são meus convidados, tanto quanto vocês, e os mantenho aqui seguros de si”. Desse modo, como se fora um anjo de luz, Satanás apresenta uma taça reluzente, semelhante ao cálice da mesa da comunhão. Que vinho é esse? Parece ser o próprio vinho da sagrada eucaristia; é o chamado vinho da autossatisfação, e, ao redor da borda da taça, você pode ver as bolhas do orgulho. Veja como intumesce a espuma da vaidade na borda do recipiente — “O Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda como este publicano”.
Vocês conhecem essa taça, meus ouvintes que enganam a si mesmos; quem dera vocês conhecessem o veneno mortal que está misturado ali. “Pecar como os outros homens? Você, não; de modo algum. Você não precisa se submeter à justiça de Cristo, para quê? Você é tão bom ou melhor que seus vizinhos; e se você ainda não é salvo, o deverá, certamente, sereis o que você acha. Não dá sempre o troco certo? Por acaso já roubou em sua vida? Você retribui adequadamente aos outros, e é tão bom ou melhor que as demais pessoas.” Ótimo! Essa é a primeira taça que o demônio lhe dá, e o bom vinho faz que você se inche de dignidade própria à medida que os vapores penetram em seu coração e você se enche de execrável soberba. Sim! Eu o vejo sentado ali, naquela sala tão cuidadosamente asseada e finamente decorada, e vejo também multidões de seus admiradores, de pé, ao redor da mesa, entre os quais até mesmo bons e honestos filhos de Deus, que dizem: “Quem dera eu tivesse metade da bondade dele!” Até a própria humildade dos justos alimenta mais ainda sua presunção. Mas espere um pouco, seu hipócrita santinho, espere um pouco; ainda há uma segunda taça por vir. Satanás olha para seus convidados com um ar de quase plenamente satisfeito desta vez, do mesmo modo que o fez para a tropa de rebeldes. “Eu enganei aqueles sujeitos alegres com a taça do prazer — no final, servi-lhes a taça da saciedade e os enganei mais ainda; e vocês, que se acham muito bons, eu também os enganarei duas vezes, realmente os farei de tolos!” Assim, traz uma taça que, às vezes, nem ele mesmo gosta de servir. É chamada de taça do descontentamento e da inquietação da mente, e há muitos que a bebem depois de toda a sua autossatisfação. Pergunto a você, que se considera muito bom aos seus próprios olhos, que não tem o menor interesse em Cristo: será que não percebe, quando se senta sozinho e começa a analisar suas qualidades para a eternidade, que elas não se encaixam em você, que você não consegue, no final de tudo, fechar um balanço favorável a si mesmo, como achava que pudesse? Já constatou que algumas vezes em que você pensava estar em cima de uma rocha havia um tremor debaixo de seus pés? Por acaso já não ouviu crentes cantando corajosamente versos como estes?
Com ousadia me erguerei
Naquele dia ante meu rei.
Pois do juízo eu livre estou
E por seu sangue ao céu eu vou.
Você certamente irá dizer: “Bem, eu não preciso cantar isso. Eu tenho sido tão bom ou melhor que qualquer frequentador de igreja que já viveu. Nunca deixei de ir à igreja todos esses anos. Só não posso é dizer que tenha, de fato, uma confiança assim tão sólida”. Houve realmente uma época em que você mantinha uma esperança em sua autossatisfação; mas agora que a segunda taça lhe foi servida, você já não anda muito satisfeito. “Bem”, diz um outro, “eu também vou sempre à igreja, fui batizado, fiz profissão de fé, embora não possa dizer que haja conhecido realmente o Senhor com toda a sinceridade e verdade. Houve um tempo em que achava que tudo estava bem comigo; mas agora ando buscando algo que não consigo encontrar”. Surge então um tremor no coração. Construir algo em cima da justiça própria não é tão prazeroso quanto alguém poderia supor.
Sim, esta é a segunda taça. Espere um pouco mais e, quem sabe, ainda neste mundo, mas certamente já na hora da morte, o demônio trará a terceira taça, a do desalento diante da descoberta de estar perdido. Quantos homens que se valeram de justiça própria nesta vida descobriram que, afinal, aquilo sobre o qual colocavam sua esperança os traiu. Ouvi uma vez a respeito de um exército que, tendo sido derrotado numa batalha, tratou de bater em retirada. Assim, por maior que fosse o poder que lhes restava, os soldados fugiram em direção a determinado rio, onde esperavam encontrar uma ponte, pela qual iriam passar e se colocar em segurança. Quando, porém, chegaram ao rio, ouviu-se à frente deles um grito de pânico: “A ponte caiu, a ponte caiu!” Esse grito, no entanto, não foi ouvido por todos; e uma multidão de soldados, que já vinha correndo precipitadamente em direção à ponte, empurrou os que estavam à frente, forçando-os a cair no rio, até que este ficasse completamente repleto de corpos dos afogados. Tal é o desígnio daquele que confia na justiça própria. Você talvez pensasse haver uma ponte no ritual da igreja; e que o batismo, a confirmação e a ceia do Senhor deveriam constituir os sólidos arcos dessa ponte, formada por boas obras e cumprimento de obrigações. Contudo, quando já prestes a deixar esta vida, pode vir a ser ouvido um grito: “A ponte caiu, a ponte caiu!” E será inútil, então, tentar voltar. A morte está vindo bem atrás de você e o forçará a ir adiante. Você poderá ter de descobrir o que é ter de perecer tendo rejeitado a verdadeira e grande salvação e procurado salvar a si mesmo por meio de suas próprias obras. E esta a última taça: o pior vinho; e sua porção eterna será a mesma do devasso. Por melhor que você se julgasse que era, como rejeitou Cristo terá de provar da taça da ira de Deus, taça que está cheia de pavor e estremecimento. Certamente todos os ímpios da terra sorverão e beberão as fezes (SI 75.8) desse cálice, e você o beberá, tal como eles. Oh, irmãos, ainda é tempo de tomar cuidado! Deixem a soberba e humilhem-se, pois, debaixo da potente mão de Deus (1Pe 5.6). Creiam no Senhor Jesus Cristo, e vocês serão salvos (At 16.31).
3. Alguns de vocês acham que escaparam do flagelo. Mas existe ainda uma terceira mesa repleta de convidados dos mais honrosos. Creio que ali, mais do que nas outras mesas, têm-se sentado príncipes e reis, governantes e ministros, juntamente com grandes homens de negócios. E chamada mesa do mundanismo. Um daqueles homens comenta: “Eu não gosto de devassos. Meu filho mais velho, por exemplo. Tenho trabalhado muito e cuidado de ganhar o meu dinheiro durante toda a minha vida, e não é que esse rapaz não pretende trabalhar no meu negócio! Tornou-se um verdadeiro devasso! Estou muito contente por haver o pastor falado com bastante dureza sobre isso. Também não dou a mínima atenção às pessoas cheias de justiça própria. Elas não são de modo algum importantes para mim. Na verdade, não me importo nem um pouco com a religião. Gosto de saber é se as aplicações e os investimentos financeiros estão subindo ou caindo, se existe uma nova oportunidade de se fazer um bom negócio, enfim, isso é tudo o que me importa”. Ah, homem mundano! Li sobre um amigo de vocês que se vestia com roupa escarlate, em linho fino e de maneira bem suntuosa todos os dias. Sabe qual foi o fim dele? Deveria se lembrar, pois o mesmo fim é o que espera por você. O fim de sua festa será o mesmo da festa dele. Se o seu Deus é este mundo, se depender dele você acabará descobrindo que o seu caminho está cheio de amargura.
Veja agora a mesa desses homens mundanos, que vivem apenas em função dos seus lucros e ganhos. Satanás leva até aquela mesa uma taça transbordante e diz a um deles: “Meu jovem, você está começando no mundo dos negócios e, por isso, não precisa se importar muito com essas convenções a respeito de honestidade nem com os caprichos, um tanto fora de moda, da religião. Fique rico o mais rápido que você puder! Arrume dinheiro. Arrume dinheiro honestamente, se puder, ou, se não, como você puder, de qualquer maneira”, diz o diabo. Ele coloca a taça sobre a mesa: “Aqui está um vinho recém-aberto para você”. “Sim”, diz o jovem, “eu agora tenho prosperidade, abundância. Minhas esperanças realmente se concretizaram”. Você então vê o primeiro, o melhor vinho da festa dos mundanos e, como muitos de vocês, são tentados a invejar esse homem. “Oh, se eu tivesse essa perspectiva nos negócios”, diz. “Não tenho nem metade da capacidade desse homem, nem poderia, aliás, negociar como ele o faz — minha religião não permitiria… Mas com que rapidez ele ganha dinheiro e enriquece! Oh, se eu pudesse ser como ele é!”
Espere meu irmão, não faça julgamentos antes do tempo. Há ainda uma segunda taça por vir — o pesado e nauseante gole do desvelo. O homem conseguiu obter rapidamente dinheiro, mas os ricos caem mais facilmente na tentação e no laço do diabo. A riqueza obtida por meios ilícitos ou usada dessa maneira traz consigo uma degeneração que não afeta propriamente o ouro ou a prata, mas, sim, que afeta o coração do homem. Um coração degenerado é uma das coisas mais horríveis que um homem pode ter. Veja, por exemplo, esse amante do dinheiro e perceba o desvelo pela riqueza que existe em seu coração. Perto de sua casa, vive uma pobre mulher de idade avançada. Sua renda é insignificante, mas ela proclama: “Bendito seja o Senhor, pois tenho o suficiente!” Nunca se pergunta como irá viver amanhã ou como vai morrer; dorme docemente, toda noite, sobre o travesseiro do contentamento e da fé. E aqui está esse pobre tolo, dispondo de riquezas incontáveis, mas triste e abatido porque perdeu uma moeda quando caminhava pela rua ou teve de fazer uma doação um pouco maior para uma instituição de caridade em razão da pressão de amigos; ou ainda porque seu temo novo se desgastou rápido demais.
Logo depois, vem a avareza. Muitos tiveram que beber dessa taça. Que Deus possa nos resguardar de suas gotas causticantes. Um grande pregador norte-americano disse: “A cobiça gera a miséria. A visão de casas melhores do que as nossas, roupas além de nossas posses, joias de custo mais elevado do que aquilo que podemos usar, meios de transporte imponentes e curiosidades raras além do nosso alcance, tudo isso serve de incubadora para a ninhada de víboras dos pensamentos de cobiça. Perturba o pobre que gostaria de ser rico e atormenta o rico que gostaria de ser mais rico. O homem cobiçoso anseia pelo prazer: fica triste na presença da alegria, e a alegria do mundo é a sua tristeza, porque toda a felicidade dos outros não é sua. Não creio que Deus o abomine. Ele sonda seu coração como se estivesse entrando numa caverna de pássaros barulhentos, ou num ninho de víboras, e sente repulsa diante da visão de seus moradores rastejantes. Para o homem cobiçoso, a vida é um pesadelo, e Deus permite que ele lute com isso da melhor maneira que puder. Mamom poderia construir seu palácio em um coração assim, com o prazer trazendo toda sua festança para ali e a honra todas as suas grinaldas — seria como ter prazer em uma sepultura e enfeitar de grinaldas uma tumba”.
Depois de tomar-se avarento, tudo o que o homem possui não significa mais nada para ele. “Mais, mais, mais!”, diz ele; tal como algumas pobres criaturas em terrível febre clamam por “água, água, água!” e você lhes dá de beber água, mas, assim que a bebem, sua sede aumenta. Tal qual sanguessugas no dorso de um cavalo, ele clama: Dá, dá! (Pv 30.15). E uma loucura voraz, que procura abarcar o mundo todo com seus braços, ao mesmo tempo que despreza a abastança que já tem. E uma verdadeira maldição, da qual muitos morreram, e alguns, até, com um saco de moedas nas mãos e a tristeza estampada na face porque não puderam levar suas riquezas consigo para o caixão nem carregá-las para o outro mundo.
Chego, assim, à taça seguinte. Baxter¹ e outros tremendos pregadores do passado costumavam retratar o avarento assim como o homem que vive apenas para ganhar dinheiro como estando no meio do inferno. Imaginavam Mamom derramando ouro derretido em suas gargantas. “Olhe aqui”, diriam os demônios, zombadores, “não é isso o que você queria? E isso o que você tem agora! Beba, beba, beba!”, e ouro derretido seria neles derramado boca abaixo. Não me delicio com qualquer dessas terríveis cenas imaginárias, mas uma coisa eu sei: aquele que vive aqui para si mesmo acabará por perecer; quem ama as coisas deste mundo, em vez de colocar seus alicerces solidamente, edificou a sua casa sobre a areia. Quando descer a chuva, correrem as torrentes, soprarem os ventos, e baterem com ímpeto contra aquela casa, ela cairá; e grande será a sua queda (Mt 7.26,27) . Mas temos, em primeiro lugar, o melhor vinho: trata-se de um homem respeitável — respeitável e respeitado, pois todo mundo lhe presta honras; e depois, o que há de pior — quando a mesquinharia destrói sua riqueza e a cobiça enlouquece seu cérebro. Isso, certamente, acontece sempre que você se entrega ao mundanismo.
4. A quarta mesa está posta em um canto bastante recluso, uma seção bem à parte no palácio de Satanás. A mesa ali é para os pecadores secretos. A velha regra dos vinhos é nela mantida. Naquela mesa, em uma sala bastante escura, vemos, hoje, um jovem sentado. Satanás faz-se de seu criado, andando sem fazer barulho para que ninguém o possa ouvir. Traz para ele a primeira taça — quão doce ela é! E a taça do pecado secreto. As águas roubadas são doces, e o pão comido às ocultas é agradável (Pv 9.17). Como é bom comer este bocado sozinho! Será que já houve algo que tenha descido de maneira tão delicada pela garganta? Este é o primeiro vinho. Depois deste, Satanás traz outro — o vinho da consciência perturbada. Os olhos do homem mantêm-se abertos. Ele diz: “O que foi que eu fiz? O que estou fazendo? Ah”, exclama esse Acã², “na primeira taça que você me trouxe, borbulhante, vi uma porção de ouro e uma vistosa roupa de Babilônia. Então, desejei: ‘Sim, eu preciso ter isso’; mas meu pensamento agora é: ‘Que vou fazer para esconder isso, onde colocá-lo? Devo cavar? Sim, devo cavar fundo como o inferno para poder escondê-lo, pois do contrário acabará sendo descoberto”’. O repugnante promotor do banquete está lhe trazendo agora uma enorme tigela, cheia de uma mistura escura. O pecador secreto bebe e fica confuso; teme que seu pecado seja descoberto. Não tem paz, não tem alegria; está tomado de um medo inquietante. Teme que seu deslize seja detectado. À noite, sonha que há alguém atrás dele; uma voz sussurra em seu ouvido: “Eu sei tudo sobre isso; vou contar a alguém”. Talvez imagine que o pecado que cometeu em segredo vaze para os seus amigos, ou que seus pais venham a saber. Pode ser que até o seu médico conte a história e espalhe seu segredo. Não há descanso para esse homem. Está constantemente com medo de ser apanhado. Ele me lembra um homem que, devendo uma grande quantia em dinheiro, tinha medo que a polícia viesse em seu encalço. Certo dia, ao ser pego por um amigo pelo braço por cima de uma cerca, exclamou: “Deixe-me ir, tenho pressa. Vou pagar amanhã!”, imaginando que alguém o estivesse prendendo. Tal a posição em que o homem se coloca ao tomar parte em coisas ocultas de desonestidade e pecado. Não encontra descanso nem para a sola do seu pé, por temer a descoberta.
Por fim, chega à descoberta. E a última taça. Frequentemente, chega ainda aqui na terra, pois esteja certo de que o pecado é sempre encontrado e que isso, geralmente, acontece aqui. Que horrível exibição seria, em um tribunal, a dos homens que são forçados a beber a negra taça da descoberta! Um homem que dirigia reuniões religiosas, que era honrado como santo, é enfim, desmascarado. E o que diria o juiz, o que diria o mundo sobre ele? Que ele só é merecedor de escárnio, desgraça e reprovação, onde quer que for. Mas suponha que seja tão ardiloso a ponto de passar pela vida sem ser descoberto — embora, particularmente, eu ache isso quase impossível. Que cálice ele terá de beber quando tiver de se colocar finalmente ante o tribunal de Deus! “Tragado, carcereiro, abominável capataz do calabouço do inferno! Traga o prisioneiro!” Ele vem. Todos os mundanos estão ali reunidos. “Levante-se! Você fez alguma profissão de fé religiosa? As pessoas achavam que você era um santo.” Ele está sem fala. Mas muitos ali, naquela multidão, comentam: “Nós, de fato, o considerávamos assim”. O livro está aberto, e seus registros são lidos; transgressão após transgressão vai sendo desnudada. Está ouvindo as vaias que recebe? Movidos pela indignação, os justos levantam suas vozes contra o homem que os enganou e que se achava no meio deles como um lobo com pele de cordeiro. Quão terrível deve ser receber a zombaria do universo! O homem bom pode suportar a zombaria do ímpio, mas para o ímpio suportar a vergonha que a indignação e a crítica do justo lançam sobre ele deve ser uma das coisas mais terríveis, juntamente com o sofrimento de ter de se submeter à ira do altíssimo, que, não é preciso enfatizar, constitui a última taça do terrível banquete do diabo, da qual o pecador secreto será servido para sempre e sempre.
Faço uma pausa, agora, simplesmente para reunir forças, a fim de pedir que qualquer coisa que eu haja dito, que possa estar relacionada com qualquer dos meus amados ouvintes, não seja esquecida. Eu lhes imploro, homens, irmãos, que, se vocês estão neste momento se servindo das gorduras e bebidas do banquete do inferno, por favor, deem uma parada e reflitam: qual será o fim de tudo isso? Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna (Gl 6.8). Não posso mais me demorar por aqui.
II. Permita-me agora me ocupar por alguns minutos em levá-lo à CASA DO SALVADOR, onde o Senhor serve seu banquete aos seus amados. Venha. Sente-se conosco à mesa de Cristo, a mesa da providência material. Ele não festeja com seus filhos da mesma maneira que o príncipe das trevas. Pelo contrário: é comum que o primeiro cálice que Cristo sirva seja o cálice da amargura. Ali estão seus próprios filhos amados, seus próprios redimidos, que só podem, por enquanto, lamentar. Jesus lhes serve primeiro a taça da pobreza e da aflição, faz que seus próprios filhos a bebam, até que digam: Encheu-me de amarguras, fartou-me de absinto (Lm 3.15). E assim que Cristo começa. O pior vinho primeiro. Na Inglaterra de hoje, quando começa a instruir os jovens recrutas, o sargento lhes dá como incentivo uma moeda e depois, então, vêm a marcha, os exercícios, até a batalha. Cristo, não; jamais trata seus recrutas dessa maneira. Eles têm de calcular o custo para começar a construir e saber se serão capazes de acabar (Lc 14.28). O Senhor não busca discípulos que se vislumbrem com as primeiras aparências. Inicia de maneira dura, e não são poucos os filhos de Deus que descobrem que o primeiro vinho da mesa do redentor é o da aflição, perseguição, até pobreza e necessidade.
Nos tempos antigos, quando o melhor do povo de Deus estava à mesa, ele costumava servi-los pior ainda: andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, aflitos e maltratados (dos quais o mundo não era digno) (Hb 11.37,38). Continuaram bebendo desse cálice amargo ainda por algum tempo. Mas, deixe-me lembrar-lhes, depois de tudo isso, Jesus lhes trouxe o cálice mais doce — e você, que já foi provado, sabe perfeitamente disso: depois do cálice da aflição, vem o da consolação de Deus, e quão doce ele é! Tem sido privilégio deste seu pregador beber desse cálice depois de passar por doença e dor. Posso lhes dar testemunho de já haver dito ao meu Mestre: Mas tu guardaste até agora o bom vinho (Jo 2.10). Tão bom que, daí em diante, seu sabor retirou todo o gosto de amargura e de tristeza da alma. Então, eu concluí: “Certamente a amargura dessa doença é passada, pois o Senhor se manifestou a mim e deu-me de seu melhor vinho”. Contudo, amados, o melhor vinho mesmo ainda está por vir. O povo de Deus verá isso claramente. O pobre santo um dia morre. O mestre deu-lhe, sim, o cálice da pobreza, mas, de agora em diante, deste não mais não beberá; pois, para todos os fins, ele é agora rico. Bebeu da taça da doença — mas nunca mais a beberá. Bebeu da taça da perseguição — mas agora está glorificado, juntamente com seu mestre, assentado junto a ele, em seu trono. As melhores coisas chegaram a ele, por fim, quanto às circunstâncias exteriores.
Dois mártires foram queimados, uma vez em Stratford-le-Bow. Um deles era manco, e outro era cego. Quando foram amarrados à estaca, o homem manco pegou sua muleta e a atirou longe, dizendo ao outro: “Alegre-se, meu irmão, este é o forte purgante que vai nos curar. Dentro de uma hora, eu não serei mais aleijado e você não será mais cego”. As melhores coisas estavam por vir. Com frequência, porém, acho que os filhos de Deus são muito semelhantes aos cruzados. Ao darem início às suas jornadas, os cruzados tinham de abrir caminho por meio de luta, em muitos quilômetros de território inimigo, marchando por entre as linhas adversárias. Talvez você se lembre da história que diz que, quando os exércitos do duque de Bouillon chegaram aos arredores de Jerusalém, os soldados desceram de seus cavalos, bateram palmas e clamaram: “Jerusalém, Jerusalém, Jerusalém!” Largaram suas armas, deixaram toda a prontidão da jornada e se esqueceram de todas as feridas, pois tinham Jerusalém diante de seus olhos. Assim será com os santos quando clamarem finalmente “Jerusalém, Jerusalém, Jerusalém!”; quando toda tristeza, toda pobreza e toda doença tiverem passado e forem revestidos de imortalidade. O vinho ruim — por acaso eu disse ruim? Não, o vinho amargo é retirado, e o melhor vinho é trazido; e os santos se veem glorificados para sempre com Cristo Jesus.
Agora, iremos nos sentar à mesa da experiência interior. A primeira taça que Cristo traz a seus filhos, quando se sentam a esta mesa, é uma que, de tão amarga, talvez nenhuma linguagem possa descrever: é a taça da convicção do pecado. E uma taça negra, cheia da mais intensa amargura. O apóstolo Paulo bebeu um pouco dela certa vez, mas foi tão forte que o deixou cego por três dias. A convicção de seu pecado o subjugou totalmente, a ponto de somente poder entregar sua alma a jejum e oração. Somente depois de ele ter bebido a taça seguinte é que as escamas caíram de seus olhos. Eu já bebi dela, filhos de Deus, e cheguei até a achar que Jesus era cruel; mas, pouco tempo depois, trouxe-me ele uma taça mais doce, a taça do seu amor perdoador, repleta do carmesim de seu precioso sangue. O sabor deste vinho está na minha boca até hoje, pois é um sabor como o do vinho do Líbano (Os 14.7), que envelhece no tonel por muitos anos. Você não se lembra, irmão, que após ter bebido o copo da tristeza, Jesus veio e lhe mostrou suas mãos e seu lado e lhe disse: “Pecador, morri por você e me entreguei por você; crê em mim?” Você não se lembra como creu e sorveu do cálice, e como creu mais uma vez e tomou um gole maior ainda e disse: Seja bendito o nome de Deus para todo o sempre (Dn 2.10) e que toda terra diga ‘Amém’, pois ele quebrou as portas de bronze e despedaçou as trancas de ferro (SI 107.16) e libertou os cativos? Desde então, o mestre glorioso tem-lhe dito: “Amigo, venha, suba um pouco mais!” e o tem levado a se sentar em mesas mais elevadas em melhores salas e tem-lhe dado de coisas ainda mais doces e saborosas.
Não lhe vou falar hoje sobre os vinhos que você já bebeu. A esposa de Cântico dos Cânticos poderia perfeitamente suprir a minha deficiência no sermão desta manhã: ela bebeu do vinho aromático das suas romãs (Ct 8.2). O mesmo aconteceu com você, nesses momentos alegres e elevados em que teve comunhão com o Pai e o Filho, Jesus Cristo, Mas espere um pouco; ele ainda guarda o melhor vinho para você. Em breve, você irá chegar às margens do Jordão, quando, então, começará a beber do velho vinho do Reino, envelhecido desde a fundação do mundo. A safra da agonia do Salvador; a safra do Getsêmani, em breve será franqueada a você: o velho vinho do Reino. Chegará à sua terra, chamada Beulá, e começará a provar o pleno sabor do vinho bem curtido. Sabe como Bunyan descreve o lugar que cerca o vale da morte? E uma terra que mana leite e mel, terra onde os anjos frequentemente vêm visitar os santos, trazendo fardos de mirra da terra das especiarias. Agora, seu passo mais elevado foi dado, e o Senhor coloca seu dedo sobre suas pálpebras e beija sua alma. Onde está você agora? Num mar de amor, de vida, alegria e imortalidade. “O Jesus, tu realmente guardaste o melhor vinho para mim até agora! Meu mestre! Tenho me encontrado contigo nos dias de culto, mas este é um Sábado eterno. Tenho te encontrado na congregação, mas esta é uma congregação que nunca irá dispersar O meu mestre! Tenho visto cumprirem-se as promessas, mas este é o cumprimento definitivo. Tenho bendito o teu nome pela providência da tua graça, mas isso é muito mais do que tudo o que bendiga. O Senhor me deu a graça, mas agora me dá a glória; o Senhor foi meu escudo, agora é o meu sol. Estou à tua mão direita, onde há delícias perpetuamente (SI 16.11). Tu guardaste até agora o bom vinho. Tudo o que tive até agora nada é, comparado a isso.”
Vou terminar, uma vez que o tempo já se foi; eu poderia pregar uma semana sobre este assunto. A mesa da comunhão é aquela junto à qual os filhos de Deus devem se sentar. A primeira coisa que devem beber ali é a taça da comunhão com Cristo em seus sofrimentos. Se você comparecer à mesa da comunhão com Cristo, deverá beber primeiro do vinho do Calvário. Sua cabeça, cristão, deverá estar coroada com espinhos. Suas mãos deverão estar transpassadas, não transpassadas propriamente com pregos, mas, sim, você deverá, em termos espirituais, estar crucificado com Cristo. Cabe-nos sofrer com ele, caso contrário não podemos reinar com ele; devemos, primeiro, trabalhar com ele, sorvendo junto com ele o vinho que seu Pai lhe deu a beber; caso contrário, não poderemos esperar chegar à melhor parte da festa. Depois de beber e continuar a beber do vinho dos seus sofrimentos, temos de beber do cálice do seu esforço, ser batizados com o seu batismo, lutar pelas almas e termos com ele a mesma ambição do seu coração — a salvação dos pecadores; depois disso, sim, ele nos dará de beber do cálice de suas honras antecipadas. Aqui na terra, temos um bom vinho na comunhão com Cristo em sua ressurreição, seus triunfos e suas vitórias, mas o melhor vinho ainda está por vir, no final.
Ó câmaras da comunhão tuas portas têm-me sido abertas, mas só consigo contemplá-las. Está chegando o dia, porém, em que tuas fechaduras de diamante se moverão e tuas portas permanecerão abertas para sempre. Então, entrarei no palácio real para nunca mais sair. Em breve, ó cristão, você verá o rei em toda a sua beleza. A tua cabeça estará, em breve, apoiada sobre o seu peito. Em breve você se assentará aos pés de Deus como Maria, irmã de Lázaro, em Betânia. Dentro de pouco tempo, você poderá beijar sua face e sentirá que o amor do Senhor é melhor que o vinho. Posso imaginar você, meu irmão, no último momento de sua vida aqui, ou melhor, no primeiro momento de sua vida além. Quando você começar a ver Deus face a face, quando ingressar na mais íntima comunhão com ele, com nada mais para perturbá-lo ou distrair, então dirá: Tu guardaste até agora o bom vinho (Jo 2.10).
Certa vez, um santo estava morrendo, e outro, que estava sentado ao seu lado, disse: “Muito bem, meu irmão. Nunca mais o verei na terra dos vivos”. “Oh”, disse o homem moribundo, “eu o verei outra vez na terra dos vivos que está lá em cima, para onde estou indo; esta aqui é a terra dos mortos”. Irmãos, se não mais nos encontrarmos na terra dos mortos, que tenhamos a esperança de que nos encontraremos na terra dos vivos para beber o melhor de todos os vinhos.
━━━━━━━━━━━━━━━
¹ [NE] Provavelmente se trata de Richard Baxter, um dos mais destacados pregadores e teólogos puritanos (calvinistas dissidentes ingleses) do século XVII e, bem possivelmente, de todos os tempos; e que até o século XIX muitos pregadores ingleses, inclusive o próprio Spurgeon, foram altamente influenciados pelo pensamento puritano (daí, certamente, esta sua referência a Baxter).
² [NE] Veja Josué 7.1,16–20 para saber quem era Acã.
Charles H. Spurgeon. Milagres e Parábolas de Nosso Senhor: A Obra e o Ensino de Jesus em 173 Sermões Selecionados. São Paulo: Ed. Hagnos, 2016, pp. 103–112.