Fé versus Empirismo
Excerto extraído de Vincent Cheung, Commentary on First Peter (2006).
Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e, apesar de não o verem agora, creem nele e exultam* com alegria indizível e gloriosa. (1 Pedro 1:8)
Do versículo 8, podemos derivar duas características sobre a fé que são especialmente importantes para lembrar quando estamos enfrentando dificuldades e perseguição, e quando encorajamos aqueles que estão enfrentando dificuldades e perseguição.
Primeiro, a fé não surge ou depende dos sentidos. Dito de outra forma, a fé mantém um relacionamento de amor e confiança com Deus por meio de Jesus Cristo, que é estabelecido independente das sensações físicas. No entanto, por causa da relação de nossa fé com a história, algumas pessoas ficaram confusas sobre esse ponto. Portanto, vamos tirar um momento para explicar.
Começamos reconhecendo que muito de nossa fé é baseada em fatos históricos, ou no que Deus realizou ao longo da história humana, e especialmente por meio de Jesus Cristo. Podemos — devemos — ir tão longe a ponto de dizer que uma pessoa não pode ser cristã a menos que afirme uma série de fatos sobre a história e, em particular, estes incluem as coisas que Deus fez em e por meio de Cristo para redimir seus escolhidos.
1 Coríntios 15:1–8 fornece uma ilustração adequada para nosso propósito. Nos versículos 1 e 2, Paulo diz a seus leitores que se eles não “se apegassem firmemente” ao que ele lhes pregava, então eles teriam “crido em vão”. Ele resume algumas das coisas que pregou nos versículos 3–8. Ele pregou que “Cristo morreu pelos nossos pecados”, que “foi sepultado” e que “ressuscitou no terceiro dia”. Observe novamente que se alguém não “se apega firmemente” a essas coisas, então ele “creu em vão”. Qualquer um que nega — ou simplesmente não afirma, não “se apega firmemente” — a essas coisas não pode ser cristão.
Associado à ressurreição, Paulo acrescenta que Jesus “apareceu a Pedro e depois aos Doze” — isto é, depois que ele foi morto, eles o viram vivo novamente. Depois disso, ele “apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive”. E visto que algumas dessas quinhentas pessoas que viram Jesus ainda estavam vivas na época em que Paulo escreveu, isso significa que seus leitores e outros poderiam tê-los entrevistado para confirmar a pregação dos apóstolos. Paulo acrescenta que Jesus também apareceu a Tiago e aos outros e, por último, ao próprio Paulo.
Portanto, a mensagem cristã é acompanhada por testemunhas oculares e corroboração empírica. Como, então, eu posso dizer que a própria fé é totalmente independente dos sentidos físicos? E como eu posso dizer que nossa fé realmente nega a confiabilidade das sensações? Teremos de voltar para outro lugar, mas antes de deixarmos esta passagem de 1 Coríntios, há pelo menos três coisas que podemos apontar em conexão a isso.
Primeiro, um elemento essencial na mensagem do evangelho é que Cristo “morreu pelos nossos pecados”. Isso é lógica e cronologicamente anterior à ressurreição. As testemunhas podia ver que Cristo morreu, e eles podiam ver que ele foi ressuscitado dentre os mortos mais tarde. No entanto, a mensagem não é que Cristo morreu, mas que ele morreu pelos nossos pecados. Mas ninguém podia ver — com seus olhos físicos — o propósito espiritual da sua morte.
Portanto, o testemunho empírico já nos falha neste ponto crucial. E se não temos nada além do testemunho empírico, pouco importa que Cristo tenha realmente ressuscitado dos mortos, visto que não saberíamos se ele morreu pelos nossos pecados em primeiro lugar. E se não sabemos que ele morreu por nossos pecados, então não podemos saber que ele ressuscitou para nossa justificação (Romanos 4:25). Mas essas duas coisas são centrais para a mensagem de salvação; portanto, apoiar nossa fé no testemunho empírico é também destruí-lo, e de fato ter crido em vão.
Segundo, o que Paulo realmente diz aqui é “… que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras”. A mensagem a respeito da morte de Cristo, o propósito de sua morte e sua ressurreição são todos afirmados “segundo as Escrituras”. As testemunhas oculares certamente se correlacionam com os fatos, mas a correlação não é uma confirmação epistemologicamente necessária, visto que já temos a palavra infalível de Deus (“segundo as Escrituras”), e o testemunho de Deus é mais certo do que o de qualquer homem, sempre tornando este último desnecessário.
Em outras palavras, mesmo se não houvesse testemunhas oculares, a mensagem da morte e ressurreição de Cristo ainda seria verdadeira e poderíamos saber que é verdade com não menos certeza, porque já temos o testemunho de Deus na Escritura. O status da verdade do evangelho estaria completamente inalterado com ou sem o testemunho de testemunhas oculares. Só porque alguém não viu algo acontecer não significa que não aconteceu. Mas se Deus diz que aconteceu, então podemos ter certeza de que aconteceu.
Terceiro, quando estamos lendo esta passagem de 1 Coríntios, não estamos compartilhando ou participando das experiências empíricas citadas por Paulo. Em vez disso, estamos lendo um testemunho divinamente inspirado e, portanto, infalível, sobre essas experiências empíricas. De fato, os coríntios, os próprios leitores originais, estavam quase exatamente na mesma posição. A única diferença é que eles poderiam ter entrevistado as testemunhas que ainda estavam vivas. Ainda assim, eles não estavam compartilhando ou participando dessas visões do Cristo ressuscitado, mas estavam recebendo o testemunho apostólico inspirado e infalível sobre o que outras pessoas viram.
Essas experiências empíricas parecem ser atestados da fé cristã, mas elas próprias seriam epistemologicamente inferiores e incertas se não fossem os atestados escriturísticos a respeito desses próprios atestados empíricos. Ou seja, não sabemos que a Escritura é verdadeira por causa do que eles viram, mas sabemos que eles viram o que pensaram que viram porque a Escritura confirma suas experiências empíricas. Mas isso significaria que nossa fé não depende de forma alguma do empírico, nem concede uma confiabilidade básica às sensações físicas. Tudo o que sabemos é que Deus infalivelmente confirma que esses testemunhos empíricos são verdadeiros.
Voltamo-nos para Mateus 28 para reforçar nosso ponto de vista: “Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes indicara. Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram” (vv. 16–17). Eles viram, até adoraram e ainda duvidaram. Aqueles de nós que defendem uma epistemologia bíblica em vez de empírica não tropeçam nisso. Eu não acho nada surpreendente ou intrigante aqui, mas alguns comentaristas fazem um grande esforço para encontrar uma explicação.
Há quem pense que, em vez de apenas “os onze discípulos”, deve ter havido um grupo maior ali. Mas o texto não diz isso, e se alguém aceitar que uma pessoa pode ver e ainda duvidar, então ele não sentiria a necessidade de sugerir que havia muitos outros presentes além dos onze. E daí se houvesse? O texto ainda diz que eles o viram, o adoraram, e depois alguns duvidaram. Na verdade, sugerir que havia muito mais pessoas lá além das onze só fortalece nosso caso, pois mostra que se pode duvidar de algo que muitas outras pessoas supostamente estão vendo ao mesmo tempo também. Então, há o versículo que diz: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Lucas 16:31).
A conclusão é que a sensação não tem relação necessária com saber e crer. Para duas coisas terem um relacionamento necessário, significa que, quando você tem uma, sempre terá a outra. Às vezes, isso também pode incluir uma referência à proporção, de modo que, quando você tiver mais de uma coisa, também terá mais da outra. Se uma pessoa pode ver e ainda duvidar, ou se pode crer e não ver, então não há uma relação necessária entre ver e crer ou saber. Só porque você vê algo, ou pensa que vê algo, não significa que realmente está lá. A fé é baseada na realidade, mas a realidade não é conhecida pelos sentidos.
Em vez disso, se deve haver alguma relação entre ver e crer, ou conhecer, ela é estabelecida soberanamente por Deus no momento de ver, mas de fato independente da própria visão, mas apenas na ocasião da visão, visto que alguém pode ver e não crer ou saber. Isso é especialmente importante quando se trata de fé salvífica. Você pode ver o que quiser pelo tempo que quiser, mas ainda pode duvidar tanto, ou até mais do que antes. A fé é algo que é gerado em seu coração pela vontade de Deus e pelo poder de Deus. Ela vem por meio de revelação, e não por qualquer um dos sentidos (1 Coríntios 2:9–10).
Uma das maiores asneiras da história da filosofia, e da história do pensamento cristão em particular, é uma forma de abordagem “pressuposicional” da apologética que afirma usar a Escritura como seu ponto de partida, quando na verdade coloca a confiabilidade de sensações como o pré-requisito epistemológico para obter até mesmo informações sobre a Escritura.
Mas, como Spurgeon comentou uma vez sobre o assunto da segurança: “Deixe-me dizer agora, antes de me afastar deste ponto, que é possível para um homem saber se Deus o chamou ou não, e ele pode saber disso sem sombra de dúvida. Ele pode saber com tanta certeza como se lesse com seus próprios olhos; não, ele pode saber com mais certeza do que isso, pois se eu ler algo com meus olhos, até mesmo meus olhos podem me enganar, o testemunho do sentido pode ser falso, mas o testemunho do Espírito deve ser verdadeiro”.[7] Não podemos dizer que ele tinha uma epistemologia bíblica totalmente desenvolvida, e não podemos dizer que ele era totalmente antiempírico, mas ele sabia o suficiente para dizer algo assim.
Por outro lado, os defensores desta abordagem “pressuposicional” presumem ser mestres e defensores da fé, mas não conseguem captar nem mesmo este ponto simples. Entre outras coisas, eles tentaram integrar revelação com sensação, para não dizer intuição também. Alguns dos proponentes dessa escola de pensamento chegam a sugerir que podemos derivar uma epistemologia ingênua do tipo “vejo, logo conheço” da Bíblia. Além de abusar dos versículos que citam como suporte, eles procedem sem levar em conta o que a própria Bíblia afirma e ilustra sobre a não confiabilidade da sensação, sem mostrar a validade das inferências da sensação e sem definir um padrão para mostrar como se pode saber quando uma sensação é precisa ou quando é imprecisa. Na raiz, esta é apenas outra forma de irracionalismo antibíblico. Ela falha desde o início e, nesse sentido, não é melhor do que qualquer sistema de filosofia não cristão.[8]
Temos um relacionamento salvador com nosso Senhor por meio da fé. Essa fé inclui uma crença genuína em certos fatos históricos, a saber, no que Deus fez na história por meio de Jesus Cristo. No entanto, nossa crença nesses fatos históricos não é, por sua vez, baseada na sensação ou testemunho empírico, mas na revelação. É verdade que parte disso inclui a revelação sobre o empírico, embora não seja empírico em si, mas um testemunho divino sobre o empírico. Existe uma distância infinita entre os dois. Um é o testemunho falível do homem; o outro é o testemunho infalível de Deus.
A fé não é uma negação da realidade, mas é uma afirmação da realidade. Ao se apoiar na revelação em vez da especulação, sensação e intuição do homem, a fé também representa uma rejeição de uma epistemologia irracional, uma forma irracional de determinar a realidade, como aquela que se baseia na mera visão, som e cheiro.
Como tudo isso é relevante para 1 Pedro 1:8? Pedro foi um discípulo próximo de Jesus Cristo, não apenas no sentido espiritual, mas ele o seguiu na carne também, e ele é uma testemunha ocular do Senhor ressuscitado. Quem se admiraria da sua grande fé? Quem ficaria maravilhado por ele permanecer firme em face de uma perseguição mortal? Não é natural e necessário que ele tenha tal fé? Certamente não! Lembre-se de que alguns estavam olhando diretamente para o Cristo ressuscitado e ainda duvidavam. Lembre-se do que Abraão disse, que se as pessoas não cressem na Escritura, elas não creriam mesmo se um homem voltasse dos mortos para elas.
Ver não significa crer; não há nenhuma relação necessária entre um e outro. Qualquer correlação entre os dois é estabelecida apenas se na ocasião de ver o Espírito também realizar uma obra soberana no coração para produzir fé no que foi revelado. Foi o que aconteceu com Tomé. Ele não teve que crer quando viu Cristo, como se a obra do Espírito se tornasse desnecessária por causa de meras imagens e sons, mas devemos creditar sua crença à graça de Deus operando em seu coração por ocasião de sua visão e toque do Cristo ressuscitado. Mas, ainda assim, Cristo lhe disse: “Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram” (João 20:29).
Aqui está a relevância de tudo isso. Ao contrário dele, os leitores de Pedro não viram Cristo ressuscitado, mas a perspectiva bíblica é que eles não estão em uma posição espiritual inferior, que não receberam equipamento espiritual inferior, que não carecem de razões para crer e permanecer firmes, e que eles não possuem uma fé inferior. Embora não vejam a Cristo, eles o “amam” e “creem” nele, e “exultam com alegria indizível e gloriosa”. Não há nada essencialmente ausente ou defeituoso neste tipo de fé. É suficiente resistir a tudo o que esta vida terrena pode lançar sobre esses crentes.
A perseguição é visível para eles, mas Cristo é invisível. Eles vão seguir o que veem, ou vão “ver” o quadro todo, perceber a realidade como ela realmente é? A realidade é que, embora a perseguição seja dura e real, Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou dos mortos, e nós vivemos com ele. Agora ele está sentado no trono à direita de Deus, e nós estamos sentados com ele nos lugares celestiais.
Isso é o que a Escritura revela. Isso é real. E é nisso que nossa fé deve se apoiar. No entanto, quanto disso nós vimos? Quanto disso nós vemos? Não importa que não vimos e não vejamos, porque a sensação é impotente e irrelevante. Ela não pode perceber toda a realidade ou a verdadeira natureza da realidade, se é que pode perceber alguma coisa. Mas a fé é uma obra soberana do Espírito dada por meio da revelação, não da sensação.
A perseguição nos tenta a reduzir nossa percepção da realidade ao que podemos ver, ouvir e sentir, mas isso seria uma negação da realidade, já que estaríamos fechando nossas mentes para o próprio aspecto da realidade que controla tudo o que vemos, ouvimos e sentimos. E assim, “vivemos por fé, e não pelo que vemos” (2 Coríntios 5:7), e “fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (4:18).
Esse é o caráter da verdadeira fé, e é esse tipo de fé a qual Pedro apela. Nisto percebemos sua grande sabedoria pastoral. Este ponto é muito importante para nós também, porque não podemos, e realmente não devemos, recorrer aos sentidos para nos tranquilizar ou para experimentar para nos confortar. E isso é especialmente o caso em tempos de perseguição, pois em tais tempos, se dependêssemos de nossa sensação ou experiência, então pareceria que tudo está contra nós e que não há ajuda nem esperança para nós.
Mas se pela fé olharmos para a revelação, então veremos tudo o que Deus já fez por nós e agora está fazendo por nós, que ele realizou por nós grandes atos de misericórdia, e nos deu um novo nascimento e uma vida esperança por meio da ressurreição de Jesus Cristo. A perseguição é real, e não temos de negar isso, mas também não fechamos nossos olhos para os fatos da revelação.
Temos falado sobre a primeira das duas características da fé que podemos derivar de 1 Pedro 1:8. Agora chegamos à segunda, e é que a fé não apenas sobrevive, mas vence e celebra. O versículo diz que “Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e, apesar de não o verem agora, creem nele”. Portanto, esse tipo de fé pode amar e crer em uma pessoa puramente com base na revelação e independentemente da sensação. Observamos que essa fé não é inferior em qualidade ou força. Ela estabelece um relacionamento genuíno com Deus e pode resistir à perseguição.
No entanto, o versículo não para por aí, mas continua a dizer que os leitores de Pedro “exultam com alegria indizível e gloriosa”. Portanto, eles não são apenas impedidos de caminhar para o desespero, mas os atos de misericórdia de Deus para com eles (vv. 3–5) e a fé deles, que agora está sendo refinada pelo fogo (v. 7), os impele na direção oposta — a da alegria, celebração e triunfo! Essa alegria é tão grande que um comentarista sugere que deve ser uma alegria futura, a alegria do céu que não experimentaremos nesta vida. Mas o versículo diz que os crentes estão cheios dela. Temos a alegria do céu agora.
Essa fé não torna a vida meramente agridoce ou meramente suportável. Mas é uma alegria vitoriosa e avassaladora, e traz uma sensação de vitória. Esta vitória não é baseada na crença na terra da fantasia em que os incrédulos vivem, onde não há Deus, onde o poder divino não é a única coisa que sustenta e controla todas as coisas, e onde até mesmo o homem poderia evoluir das bestas. Mas esta vitória é baseada no conhecimento da realidade, da eleição e misericórdia de Deus e da morte e ressurreição de Cristo. Esta fé não só crê no passado e olha para o futuro, mas Pedro diz que mesmo agora, “vocês estão alcançando o alvo da sua fé, a salvação das suas almas” (v. 9). Embora a salvação completa permaneça no futuro, ela começa e cresce mesmo nesta vida presente.
Devemos seguir o pensamento de Pedro quando enfrentamos dificuldades e perseguição. E isso significa que devemos pensar em nós mesmos como os escolhidos, estrangeiros residentes no mundo e espalhados por toda a terra, pré-conhecidos, pré-amados e preordenados por Deus, na santificação de seu Espírito, e para a obediência a Jesus Cristo e a aspersão do seu sangue.
Em seguida, lembramos as ações soberanas de misericórdia de Deus, que ele realizou e ainda está realizando para nos salvar e nos preservar. Compreendemos que as provações vêm para refinar nossa fé, que vale mais do que o ouro, e por isso nos regozijamos muito, com uma alegria indizível e gloriosa. É claro que essa alegria é estimulada apenas por aqueles que realmente nasceram de novo e receberam uma esperança viva (v. 3).
Essa linha de pensamento também deve governar nossa abordagem do ministério pastoral, na pregação e aconselhamento, e assim por diante. Devemos construir sobre uma compreensão do sistema bíblico de verdade, especialmente no que se refere à salvação. Isso incluiria a natureza soberana de Deus, a natureza depravada do homem, as duas naturezas de Cristo, a eleição e preordenação de Deus, a grande misericórdia de Deus para conosco, a obra expiatória e redentora de Cristo e o poder do Espírito e operação santificadora. Pregue essas coisas ao seu povo. Diga a eles para pensarem sobre eles.
Uma compreensão dessas doutrinas bíblicas a respeito da misericórdia de Deus e nossa salvação naturalmente produzirá uma alegria inexprimível e gloriosa, mas somente nas pessoas eleitas que receberam um novo nascimento e esperança viva por meio da ressurreição de Jesus Cristo. Embora algumas traduções e comentaristas considerem “alegrar-se” (v. 6) como um imperativo — isto é, como uma ordem para se alegrar — é mais provavelmente no indicativo, uma descrição da alegria que os crentes já estão desfrutando.[9] A alegria é um produto natural da compreensão das obras de Deus na salvação.
Portanto, é um erro uma abordagem que se foca em ordenar que nosso povo exiba alegria e confiança por pura força de vontade. Eles não podem fazer isso, visto que as coisas espirituais não acontecem dessa maneira. Mas isso surgirá naturalmente à medida que o conhecimento de Jesus Cristo estimula e desperta a vida espiritual nos eleitos, implantada neles por Deus quando lhes deu o novo nascimento pela fé. Se houver vida espiritual neles, a verdade a despertará e o povo se alegrará. Se não houver vida neles, a verdade irá endurecê-los e talvez até mesmo afastá-los. De qualquer forma, a igreja será preservada e fortalecida.
Muitas abordagens que deveriam confortar e encorajar os crentes são de fato antibíblicas, mas são derivadas de falsas doutrinas, aplicações erradas da Escritura e teorias psicológicas errôneas.
A esta altura, não deveria haver necessidade de mencionar que a abordagem bíblica para confortar e encorajar os cristãos é lembrá-los da realidade da soberania de Deus em nossa salvação e nas ações de misericórdia que ele realizou e agora está realizando por eles. Segue-se que qualquer abordagem que depende da existência e do exercício do livre-arbítrio do homem é antibíblica, equivocada e fútil.
Mas existem outras abordagens falsas que são praticadas até mesmo por aqueles que supostamente afirmam as ações soberanas de Deus em nossa salvação. Por exemplo, um pastor pode dizer coisas como: “Podemos não entender por que essas coisas acontecem, mas …”; no entanto, nós realmente entendemos por que, já que Pedro diz-nos o porquê. Ele diz que essas provações acontecem para que fique comprovado que a nossa fé é genuína e que resulta em louvor, e que essa fé é muito mais valiosa do que o ouro. Você consegue ser mais claro? No entanto, algumas pessoas negam abertamente o que a Escritura diz e insistem “Não entendemos”, quando a verdade é que eles rejeitam a explicação de Deus. E quando eles fazem isso, eles são realmente deixados por si mesmos. Como pode haver conforto quando rejeitamos a fonte de todo conforto? Deus falou e nós entendemos.
Ou, um pastor pode dizer: “Não podemos entender como um Deus bom pode fazer essas coisas, mas…”; no entanto, a própria Bíblia não tem problema em dizer que um Deus “bom” pode fazer “essas coisas”. A verdade é que o pastor está julgando a Deus por seu padrão particular, e surge a questão de como Deus pode se chamar de bom quando o pastor pensa que ele pratica o mal. Em outras palavras, seu pensamento é: “Como Deus pode ser bom se eu desaprovo suas ações?”. Mas então o pastor acaba de perder seu Deus, ou ele pensa que ele mesmo é Deus. Ora, se Deus é Deus, então para Deus estar errado, ele deve julgar a si mesmo como estando errado; não cabe ao pastor. Do jeito que está, ele blasfema pelo menos por implicação.[10]
Então, alguns pastores defendem a prática da oração como uma espécie de alívio psicológico. De acordo com o raciocínio deles, Deus é nosso “pai”, e uma criança irada e frustrada deve ter permissão para sentar em seu colo e bater em seu peito para receber o conforto e a segurança do pai. Mas nosso pai terreno não é Deus, e nunca devemos presumir que nosso relacionamento com um é automaticamente análogo ao outro. Do contrário, o que nos impede de adorar nosso pai terreno, assim como fazemos ao pai celestial?
Eles dizem que os personagens do Antigo Testamento reclamaram o tempo todo. Mas eles falham em notar que Deus os repreendeu quase com a mesma frequência. E o Antigo Testamento também contém as respostas de Deus às suas queixas, dúvidas e medos, registrados para nosso benefício. Ora, os pastores e conselheiros querem que finjamos que Deus não falou para que possamos fazer a ele as mesmas perguntas novamente. Talvez não haja muitos exemplos melhores do que significa tentar a Deus do que este.[11] Não, Pedro escreveu o versículo 7, e não devemos fingir que não foi escrito: “Assim acontece para que fique comprovado que a fé que vocês têm […] é genuína e resultará em louvor”.
Portanto, não apenas suportamos, mas também prosperamos por causa da misericórdia de Deus, que ele já concedeu a nós e que continua a nos nutrir. Descansamos em sua preordenação, pois ele já agiu e já decidiu todas as coisas para sua glória e para nosso bem. Enquanto isso, nossa fé está sendo refinada pelo fogo, muito mais valiosa do que o ouro, enquanto recebemos o resultado de nossa fé, a salvação de nossas almas. Por causa disso, somos preenchidos com uma alegria vitoriosa e triunfante, que nenhuma perseguição pode esmorecer ou destruir.
Por outro lado, os incrédulos vivem e morrem em desespero, sejam eles perseguidos ou não por qualquer coisa. A alma mais miserável é aquela que é cristã apenas no nome, mas que não o é na realidade. Por causa de sua profissão, mesmo que seja uma profissão falsa, às vezes ele pode ser perseguido por ser cristão, mas lhe falta a realidade, a fé, a vida de cristão. Portanto, ele está esmagado e oprimido, sem esperança e sem alegria. A alegria do céu sustenta o cristão, mas o desespero do inferno aperta o coração do impostor. Alguns afundam tanto que acabam revelando a fé que uma vez fingiram professar. Em seguida, eles se voltam e atacam, tornando-se seus inimigos e, assim, revelando sua verdadeira natureza réproba.
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[*] Nota do Tradutor: “[…] apesar de não o verem agora, creem nele e estão cheios de uma alegria indizível e gloriosa”, na versão original (New International Version de 1984).
[7] Charles H. Spurgeon, Revival Sermons (Banner of Truth), p. 77.
[8] Para mais informações sobre a visão bíblica da metafísica, epistemologia e apologética, consulte Vincent Cheung, Ultimate Questions, Presuppositional Confrontations e Captive to Reason.
[9] Grudem, p. 61; A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, vol. 6 (Broadman Press), p. 83. Nosso ponto é válido mesmo que seja imperativo, visto que a alegria ainda seria baseada na compreensão da salvação, do que Deus fez e está fazendo pelos crentes.
[10] Para mais informações sobre o problema do mal, consulte Vincent Cheung, The Author of Sin.
[11] Ver Vincent Cheung, Prayer and Revelation.
Vincent Cheung. Commentary on First Peter (2006), pp. 28–35. Tradução: Luan Tavares (11/09/2021).
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