Confissão do Pecado — Um Sermão com Sete Textos

Por C. H. Spurgeon

Luan Tavares
21 min readJun 23, 2020

Esta manhã, meu sermão contará com sete textos, e, mesmo assim, dou garantia de que não haverá mais que três palavras diferentes em cada um deles; pois acontece que todos os sete textos são semelhantes, apesar de se situarem em partes diferentes da Sagrada Palavra de Deus. Não obstante, usarei seu conjunto para fornecer diferentes exemplos; e quero pedir àqueles que trouxeram de casa uma Bíblia que acompanhem os textos conforme eu os mencionar.

O assunto do sermão desta manhã será A CONFISSÃO DO PECADO. Sabemos ser tal confissão absolutamente necessária para a salvação. A menos que haja uma verdadeira e sincera confissão dos nossos pecados a Deus, não haverá garantia de que encontraremos misericórdia mediante o sangue do redentor. O que encobre as suas transgressões nunca prosperará; mas os que as confessa e deixa, encontrará misericórdia (Pv 28.13). Não há garantia alguma na Bíblia para o homem que não confessa seus pecados. No entanto, assim como qualquer ponto da Bíblia é passível de interpretação errônea, o mesmo se dá quanto à confissão do pecado. Muitos fazem confissão diante de Deus e, não obstante, não recebem bênção alguma, por não conter tal confissão marcas que são requisitos de Deus para afiançá-la como genuína e sincera e demonstrar ser obra do Espírito Santo. Meu texto desta manhã consiste basicamente em duas palavras: “Tenho pecado”. Vocês verão como essas palavras, nos lábios de diferentes homens, demonstram sentimentos variados. Enquanto um deles diz “Tenho pecado” e recebe o perdão, outro pode afirmar o mesmo e seguir enegrecendo sua alma com iniquidades ainda piores, mergulhando em profundezas nunca antes descobertas no poço do pecado.

O pecador endurecido — FARAÓ: Esta vez pequei (Êx 9.27).

I. O primeiro caso que irei apresentar a vocês é o do PECADOR ENDURECIDO, que, quando sob terrível pressão, resolve confessar: Esta vez pequei. No livro de Êxodo, capítulo 9, versículo 27, você encontrará a seguinte palavra: Então Faraó mandou chamar Moisés e Arão, e disse-lhes: Esta vez pequei; o Senhor é justo, mas eu e o meu povo somos ímpios.

Por que saiu essa confissão dos lábios do arrogante e tirano Faraó? Este monarca não era muito afeito a se humilhar, ainda mais perante Jeová, Deus dos judeus. Por que então tal orgulhoso e prepotente soberano se curvou? Julguem bem o mérito dessa confissão segundo as circunstâncias em que foi feita: “E Moisés estendeu a sua vara para o céu, e o Senhor enviou trovões e saraiva, e fogo desceu a terra; e o Senhor fez chover saraiva sobre a terra do Egito. Havia, pois, saraiva misturada com fogo, saraiva tão grave qual nunca houvera em toda a terra do Egito, desde que veio a ser uma nação” (Êx 9.22,23). “Ora, ora”, reconhece então Faraó, ao caírem raios e saraiva do céu, os raios fazendo pegar fogo em tudo sobre a terra e o granizo ferindo todo o campo, esta vez pequei. Ele é apenas um de uma infinidade de pessoas do mesmo tipo. Quantos marinheiros rebeldes e endurecidos, quando a bordo de um navio em que tremenda tempestade faz a madeira começar a ranger e ceder, o mastro se quebrar e a embarcação começar a flutuar à deriva, com as ondas abrindo bocarras prestes a engoli-los e apressando o caminho da morte — quantos marinheiros de duro coração já não se ajoelharam e, com lágrimas nos olhos, exclamaram: “Eu pequei!”? Mas qual o efeito e o significado de tal confissão? O arrependimento que nasce na tempestade pode morrer na calmaria; o arrependimento surgido em meio aos raios e trovões pode cessar tão logo tudo se faça quieto; e o homem que havia jurado tornar-se pio a bordo do desastre pode se tornar o mais perverso e abominável dos pecadores quando em terra firme. E quantas vezes não vimos o mesmo se repetir em situações similares, de tempestade, raios e trovões? Muitos são os que se apavoram quando ouvem rolar os trovões; brotam-se-lhes lágrimas e suplicam “Ó Deus, eu pequei!” Com os esteios de sua morada tremendo e o chão sob ela vacilando à voz de Deus, repleta de majestade. Mas, ai!, que arrependimento é este? Quando o sol torna a brilhar, e as nuvens negras se retiram, o pecado retorna ao homem, e ele se torna pior do que antes. Quantas confissões desse mesmo tipo vemos em tempos de cólera, de febre e de epidemia! Em tais ocasiões, lotam-se as igrejas de ouvintes, que, por conta dos muitos funerais que passam à porta ou dos muitos que morrem às ruas, não conseguem evitar de ir à casa de Deus para confessar seus pecados. Quantos, durante esses comparecimentos às igrejas, sabendo de um, dois ou três conhecidos mortos, chegam a pensar que realmente deveriam voltar para Deus! Mas, ai!, finda a epidemia, termina também a santa convicção; e quando o sino soa triste pela última vez anunciando uma morte por cólera, também bate pela última vez arrependido o coração de tais pessoas, que não mais derramam uma lágrima sequer.

Terei eu algum ouvinte assim, aqui, esta manhã? Não tenho dúvida de que ajudei a endurecer ainda mais o coração da pessoa que despreza a mera ideia de fé e me toma por fingido, ao tentar me esforçar por convencê-la do assunto; mas que bem sabe ser a fé algo verdadeiro e chega a senti-la, de certo modo, em tempos de terror! Se há alguma dessas pessoas aqui, esta manhã, deixe-me lhe dizer: “Você pode ter se esquecido do sentimento que teve quando em momentos de emergência, mas, veja, Deus não se esqueceu dos votos que você, então, lhe fez”. Você, marinheiro, prometeu que, se Deus permitisse que voltasse a ver terra, seria seu servo; mas não o é, mentiu para Deus, fez uma falsa promessa, não manteve o voto que seus lábios pronunciaram solenemente. Você, enfermo, no leito, prometeu a Deus que, se poupasse sua vida, não tomaria mais a pecar como antes; mas está aqui, vivo, e, no entanto, os pecados cometidos só na última semana falam por si mesmos; você não está nada melhor do que antes da doença. Conseguiria mentir para seus amigos sem esperar receber uma reprovação? Acredita então que poderia mentir para Deus sem receber punição? Sua promessa, mesmo que tenha sido feita às pressas, está registrada no céu; mesmo que seja um voto que homem algum possa cumprir, é uma promessa feita, e de maneira voluntária, passível de cobrança e de castigo em caso de sua não observância; Deus executará sua justiça sobre tal pessoa que prometeu mudar o comportamento e sua promessa não foi cumprida. Um grande protesto foi levantado recentemente contra a liberdade condicional de presos; não tenho dúvida de que há aqui alguns homens que estão para Deus assim como os detentos envolvidos no problema da liberdade condicional estão para o nosso governo. Pecadores que constataram estarem prestes a perecer prometeram bom comportamento para poder sobreviver, e só permanecem neste mundo como que por liberdade condicional; terão cumprido sua promessa? A justiça divina pode fazer contra eles o mesmo libelo que eles próprios fariam contra criminosos que se encontrassem livres entre nós, usufruindo de liberdade condicional. Talvez o anjo do anoitecer revele: “Ó Deus, esses homens prometeram melhorar caso fossem poupados; mas só pioraram. Como violaram as promessas feitas e como trouxeram a divina ira sobre sua cabeça!” Este é um primeiro exemplo de condenação, exemplo que, espero, nenhum de vocês haverá de querer para si, pois é inquestionavelmente prejudicial. De nada, portanto, adiantará dizer “Esta vez pequei”, enquanto sob influência de terror, mas esquecendo tudo logo depois.

O homem inconstante — BALAÃO: Pequei… (Nm 22.34).

II. Para o segundo texto, vou lhes apresentar outro personagem — o homem inconstante, que diz pequei, e, de fato, o sente, e de forma profunda, mas que é tão voltado para o mundo que “amou o prêmio da injustiça”. O personagem que escolhi para ilustrar essa posição é Balaão. Abram no livro de Números, capítulo 22, versículo 34: Respondeu Balaão ao Anjo do Senhor: Pequei […]

Pequei […], disse Balaão; mas, depois disso, continuou a pecar. Balaão é um dos personagens mais estranhos das Escrituras. Várias vezes fiquei intrigado com ele; parece, de algum modo, como que saído dos versos de Ralph Erskine:

Ao bem e ao mal igualmente curvado,
Tanto um santo quanto endemoninhado.

Assim parecia. Nenhum outro homem, por vezes, falava de modo mais verdadeiro e eloquente que ele; por outro lado, no entanto, exibia a mais cruel e sórdida cobiça de toda a humanidade. Tente imaginar Balaão chegando ao cume do monte. Tem as multidões de Israel lá embaixo, a seus pés. E seu dever amaldiçoá-las. Então, clama: Como amaldiçoarei a quem Deus não amaldiçoou? (Nm 23.8) Conclui sua oração, dizendo: Que eu morra a morte dos justos, e seja o meu fim como o deles! (Nm 23.10). E Deus, abrindo-lhe os olhos, faz que comece a falar sobre a vinda de Cristo, e ele diz: “Eu o vejo, mas não no presente; eu o contemplo, mas não de perto”. Vocês dirão que tal homem é um profeta esperançoso. Mas deixe-o descer do topo do monte e vocês o verão dar diabólicos conselhos ao rei de Moabe. E sabem com que devassidão as moabitas seduziram os filhos de Israel, para romperem a aliança com Jeová. De modo que Balaão parecia ter voz de um anjo ao mesmo tempo que trazia a alma de um demônio. Era um sujeito terrível, homem de duas faces, que tomava atitudes opostas.

Disse Jesus: Ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6.24). Esta advertência é, muitas vezes, mal interpretada. Compreendem alguns que a ênfase esteja no número: “Ninguém pode servir a dois senhores”. Como assim? Pode-se servir até a três ou quatro! Não. A ênfase é outra: “Ninguém pode servir a dois senhores”. Não se pode ter dois patrões, dois amos, ao mesmo tempo. Um homem pode servir a duas pessoas que não sejam seus senhores; até vinte. Pode-se viver com vinte diferentes propósitos, mas não com mais de um propósito principal — deve haver na alma apenas um único propósito norteador. Balaão procurava servir a dois propósitos principais e opostos. Era como o povo do qual é dito que “temiam o Senhor, mas também serviam a seus próprios deuses”. Ou como Rufo, farinha do mesmo saco; pois, como vocês sabem, nosso antigo rei Rufo trazia pintada em um dos lados do seu escudo uma figura representando Deus, e no outro, uma figura do diabo, tendo embaixo a inscrição: “Disponível a ambos, o primeiro que vier”. Há muitos que se acham disponíveis a ambos. Na presença de um pastor, quão pios e santos se tomam; qualquer um pensaria serem as pessoas mais respeitáveis e honestas deste mundo; emprestam certa suavidade à voz, para que os outros os imaginem notavelmente religiosos. Durante a semana, no entanto, caso se busque pelos indivíduos mais tratantes e enganadores, certamente se encontrará entre eles esses homens, cuja piedade é a mais hipócrita possível.

Podem ter certeza, meus ouvintes, de que nenhuma confissão de pecado pode ser genuína se não for a expressão de todo o coração. De nada adianta dizer Pequei e continuar no pecado. Pequei, se você o diz, e até muito sinceramente, atenção, muita atenção!, pois você poderá se voltar ao pecado e nele permanecer. Alguns homens parecem ter nascido com duas personalidades. Lembro-me muito bem de uma bela estátua de lorde Byron, na biblioteca do Trinity College, em Cambridge. O bibliotecário me chamou a atenção: “Olhe bem, senhor”. Olhei e comentei: “Que belo semblante intelectual! Que grande gênio ele foi!” “Agora, venha cá”, chamou-me ele para o outro lado. “Oh, mas que terrível demônio! Eis um homem que poderia desafiar a divindade”. O mesmo busto parecia agora ter tal carranca e olhar tão malévolo que Milton teria ali buscado inspiração para dizer, em seus versos: “Melhor reinar no inferno que servir no céu”. Voltei-me para o bibliotecário e perguntei: “Acha que o escultor planejou isto?”, “Sim”, respondeu-me ele. “Pretendia retratar dois aspectos opostos do seu caráter: o grande, enorme, quase sobre-humano gênio que Byron possuía e a imensa quantidade de pecado que havia em tal alma”. Há aqui hoje, provavelmente, alguns homens desse mesmo tipo. Ouso dizer que, tal como Balaão, tudo podem conquistar com sua argumentação; podem quase operar milagres; ao mesmo tempo, há algo dentro deles que revela um tremendo caráter pecador, tão equivalente ao que se consideraria de sua bondade. Balaão, como sabemos, ofereceu sacrifícios a Deus no altar de Baal; era esse seu duplo caráter. Muitos o imitam: oferecem sacrifícios a Deus no santuário de Mamom; ao mesmo tempo que fazem doações para a construção de uma igreja ou aos pobres, usam de seus negócios para arrancar dos mesmos pobres o pão, sugando-lhes o sangue para poderem enriquecer. Ah, de nada adianta dizer Pequei, se você não o disser com o coração. A confissão do homem inconstante não tem valor.

O homem insincero — SAUL: Pequei… (1Sm 15.24).

III. Passemos ao terceiro personagem e ao terceiro texto. Abram no primeiro livro de Samuel, no capítulo 15, versículo 24: Então disse Saul a Samuel: Pequei…

Eis o homem insincero — o homem que não é como Balaão, que, de certo modo, era sincero em ambos os lados opostos; mas, sim, um homem que é exatamente o contrário — que não tem firmeza alguma de caráter, mas se comporta sempre por aquilo que se passe em sua mente. Tal homem era Saul. Samuel o reprovara, e ele confessou: Pequei. Mas não tinha certeza do que dizia; se você ler todo o versículo, verá que ele diz: Pequei, porquanto transgredi a ordem do Senhor e as tuas palavras; porque temi o povo, e dei ouvidos à sua voz (1Sm 15.24). Uma desculpa mentirosa. Saul nunca temeu ninguém; estava sempre disposto a realizar sua própria vontade — era um déspota. Pouco antes, havia dado outra desculpa, dizendo ter o povo tomado bois e carneiros para sacrifício a Jeová. Ambas as desculpas eram falsas. Lembremo-nos de que o mais destacado aspecto do caráter de Saul era a sua insinceridade. Um dia mandava arrancar Davi do leito para matá-lo em sua casa; outro dia, declarava: Pequei; volta, meu filho Davi, pois não tomarei a fazer-te mal […] (1Sm 26.21). Um dia, porque havia Davi lhe salvado a vida, dizia: Tu és mais justo do que eu […] (1Sm 24.17); mas no dia anterior fora atacar seu genro na intenção de liquidá-lo. Saul ora andava entre os profetas e facilmente se tomava um deles, ora ia consultar feiticeiros. Ora estava em uma posição, ora em outra, mas insincero em todas.

Quantos desses temos em cada assembleia; homens falsos e facilmente influenciáveis! Não importa o que se diga a eles, irão sempre concordar. São aparentemente de disposição afetuosa, e é até provável que tenham certa consciência — mas consciência por demais frágil, que, quando tocada, parece ceder, dando a impressão de ser perigoso sondá-la mais fundo — ela se recupera logo, se for ferida. Acho que já usei tal comparação anteriormente, mas vou usá-la de novo: há homens que parecem ter coração maleável, de borracha; assim que tocado, parece receber uma impressão, mas de nada adianta, pois logo volta à sua forma original. Pode-se comprimi-lo de toda forma que desejar, pois é tão elástico que tomará a forma que se quiser; mas não se consegue fixar neste aspecto do caráter e logo volta a ser o que era antes. Ó ouvintes, muitos de vocês são deste tipo; curvam a cabeça na igreja, dizendo a Deus: “Errei e me desviei do teu caminho”; mas não falam sério. Chegam ao ministro e confessam: “Arrependo-me dos meus pecados”; mas não sentem ser, na verdade, pecadores; apenas o dizem para agradar. E hoje vocês se encontram na casa de Deus. Ninguém é mais impressionável que vocês: as lágrimas lhes escorrem na face sem dificuldade; não obstante, secam-se tão logo são derramadas, e vocês permanecem, para efeito geral, do mesmo modo que eram antes. Dizer “Pequei” de forma não intencional é mais vil que inútil, pois é zombar de Deus fazer uma confissão com insinceridade no coração.

Fui breve sobre este personagem, que se assemelhava a Balaão. Todavia, pode-se ver de imediato que há um contraste entre Saul e Balaão, embora haja afinidades entre os dois. Balaão era um homem mau, mas grande em tudo o que fazia; Saul, exceto em estatura, era pequeno em tudo — baixo na bondade e pequeno no caráter. Era tolo demais para ser muito mau, mas também ímpio demais para ser bondoso por algum tempo que fosse. Já Balaão era grande em ambos: Ainda que Balaque me quisesse dar a sua casa cheia de prata e de ouro, eu não poderia ir além da ordem do Senhor meu Deus, para fazer alguma coisa, nem pequena ou grande (Nm 22.18).

O arrependido hesitante — ACÃ: Verdadeiramente, pequei… (Js 7.20).

IV. Quero apresentá-los a um caso muito interessante: o do arrependido duvidoso. E o caso de Acã, do livro de Josué, capítulo 7, versículo 20: Respondeu Acã a Josué e disse: Verdadeiramente, pequei contra o Senhor Deus de Israel […] (Js 7.20).

Acã havia roubado parte dos despojos da cidade de Jericó. Foi descoberto e condenado à morte. Aponto esse caso para ilustrar pessoas cujo caráter é duvidoso até no leito de morte; que, aparentemente, se arrependem, mas de quem o máximo que podemos esperar é que suas almas sejam, por fim, salvas, sem termos, no entanto, de fato certeza. Acã, como sabemos, foi apedrejado, por haver desonrado Israel. Mas encontrei na Mishná, antiga exposição judaica da Bíblia, estas palavras: “Disse Josué a Acã: O Senhor há de te perturbar hoje”; e o comentário relativo à ênfase é este: “Foi usado o termo hoje significando que Acã seria perturbado nesta vida, por ser apedrejado até a morte, mas que Deus teria misericórdia de sua alma, pois ele havia feito uma confissão plena de seu pecado”. Sinto-me inclinado, após ler o capítulo, a concordar com o pensamento de meu venerável e agora glorificado predecessor, dr. Gill, acreditando que Acã de fato foi salvo, apesar de sua morte ter servido de punição exemplar. Observem o modo gentil com que Josué fala com ele. Diz: Filho meu, dá, peço-te, glória ao Senhor Deus de Israel, e faze confissão perante ele. Declara-me agora o que fizeste; não mo ocultes (Js 7.19). Logo vemos Acã fazendo uma confissão plena, declarando: Verdadeiramente pequei contra o Senhor Deus de Israel e eis o que fiz assim e assim. Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha de ouro do peso de cinquenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata debaixo da capa (Js 7.20,21). Parece ser uma confissão tão completa que, se me fosse permitido julgar, diria: “Espero encontrar Acã, o pecador, diante do trono de Deus”. Mas, como constatei, Matthew Henry não era dessa mesma opinião; e talvez outros expositores considerem que, assim como seu corpo foi destruído, assim o fora também sua alma. Selecionei este caso, portanto, como exemplo de um arrependimento duvidoso.

Ah, caros amigos, tem sido minha sina permanecer ao lado de muitos leitos de morte e ver muitos arrependimentos como este. Cheguei a estar com um homem esgotado até os ossos, sustentado por travesseiros na cama, que me disse, quando conversei com ele sobre o juízo por vir: “Sinto que tenho sido culpado, mas Cristo é bom; confio nele”; e eu pensei comigo mesmo: “Acho que a alma desse homem está salva”. Mas sempre volto a constatar, em melancólica reflexão, que não tinha prova alguma disso, além de suas palavras; pois é preciso prová-lo por atos, e na vida futura também, de modo que se possa sustentar a afirmação da salvação de um homem. Conhecem a história do médico que mantinha um registro de mil pacientes, que achava que iriam morrer e acreditava estarem arrependidos? Ele escrevia em um livro os nomes dos que, acreditava ele, caso morressem, iriam para o céu. Todavia, eles não morreram; continuaram vivos. E, conta o doutor, dos mil nomes, ele não conseguiu apontar nem três que, depois de melhorarem, não tivessem voltado a pecar de forma ainda pior. Ah, caros amigos, espero que nenhum de vocês tenha um arrependimento desse tipo no leito de morte; espero que seu ministro, ou seus parentes ou amigos, não tenham de ficar a seu lado no derradeiro leito, desejando: “Pobre coitado, espero que ele seja salvo”. Mas, ai!, o arrependimento em um leito de morte é algo tão frágil, uma esperança tão pobre e trivial, que temo, no final das contas, que essa alma possa acabar perdida. Oh, morrer com certeza plena, com abundante garantia, legando um testemunho de que deixamos essa vida em paz — eis um modo bem mais feliz do que o de morrer de maneira duvidosa, febril, flutuando entre dois mundos, sem que nem nós mesmos os nossos amigos possam saber para qual dos dois acabaremos partindo. Que Deus nos dê a graça de podermos dar durante a vida provas de nossa verdadeira conversão, para que nosso caso não seja duvidoso!

O arrependimento desesperado — JUDAS: Pequei… (Mt 27.4).

V. Não vou prendê-los muito mais, acredito, mas devo agora contar sobre outro caso ruim, o pior de todos. É o do ARREPENDIMENTO DESESPERADO. Queiram chegar ao capítulo 27 de Mateus, no versículo 4. Aí encontrarão um terrível caso de arrependimento desesperado. Vocês reconhecerão o personagem assim que eu ler o versículo: Pequei, traindo o sangue inocente (Mt 27.4). Sim, Judas, o que havia traído seu mestre, vendo que Jesus fora condenado, devolveu, compungido, as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo: Pequei, traindo o sangue inocente. […] E tendo ele atirado para dentro do santuário as moedas de prata, retirou-se — e fez o quê? — e foi enforcar-se (Mt 27.3,5). Eis o pior arrependimento de todos. Na verdade, não acho correto considerar tal ato como arrependimento; é melhor chamá-lo remorso. Judas, então, confessou seu pecado e foi enforcar-se. Oh, que espantosa, terrível, horrenda confissão, desesperada! Já presenciaram alguma? Se não, que Deus os abençoe para que nunca cheguem a presenciar. Testemunhei tal experiência e rogo a Deus que não mais seja testemunha desse fato: o arrependimento de alguém que vê a morte encará-lo e compelido a dizer: Pequei. Tente dizer a tal pessoa que Cristo morreu pelos pecadores; ela responderá: “Não há esperança para mim; amaldiçoei Deus face a face; eu o desafiei; os dias de minha graça cessaram; minha consciência foi marcada por ferro em brasa; estou morrendo, e sei que estou perdido para sempre!” Um caso como este aconteceu há muito tempo e foi registrado — o caso de Francis Spira o mais temível, exceto talvez, o de Judas, marcado na memória da humanidade. Oh, meus ouvintes, poderá algum de vocês vir a ter um arrependimento como o dele? Espero que não; e que sirva de advertência a todos os que pecam arrepender-se como fez tal homem, até mesmo para as gerações que ainda não nasceram.

Na vida de Benjamin Keach — foi ele um dos meus predecessores — , encontrei o caso de um homem que fora professor de religião, mas se desviou da fé, caindo em horrorosos pecados. Quando ele estava morrendo, Keach, acompanhado de muitos outros amigos, foi vê-lo, mas não conseguiam estar com ele por muito tempo. Disse-lhes o moribundo: “Podem ir embora; de nada adianta que me procurem; pequei contra o Espírito Santo; sou como Esaú, vendi minha primogenitura e, embora eu a busque diligentemente, com lágrimas, nunca mais a encontrarei”. Então, pôs-se a vomitar palavras como estas: “Minha boca está repleta de cascalho e pareço beber absinto sem parar. Não me falem, não me falem sobre Cristo! Sei ser ele o Salvador, mas eu o odeio, e ele me odeia. Sei que devo morrer; sei que devo perecer!” A isso se somavam choros lúgubres e urros medonhos, que ninguém conseguiu suportar. Os amigos voltaram de novo, em momentos mais calmos, para buscar trazê-lo à luz da razão, mas o ouviram apenas dizer: “Estou perdido! Estou perdido! Nada do que disserem irá adiantar!” Ah, talvez haja aqui hoje alguém que eventualmente possa vir a sofrer a mesma terrível morte que esse homem; pois quero advertir tal pessoa de que se arrependa agora, antes que chegue a derradeira hora. Que o Espírito Santo permita que se volte para Deus com verdadeiro arrependimento e, então, não tema; pois aquele que tem os pecados lavados no sangue do Salvador não precisa mais sentir remorso por seus pecados, inteiramente perdoados pelo redentor.

O arrependimento do santo — JÓ: Se peco… (Jó 7.20).

VI. Passemos à luz do dia. Tenho caminhado com vocês por confissões escuras e sombrias. Não mais os prenderei em tal ambiente. Mostrarei a vocês duas boas confissões. A primeira é a de Jó, no capítulo 7, versículo 20: Se peco, que te faço a ti, ó vigia dos homens? (Jó 7.20). Este é o arrependimento do santo. Jó era um santo, mas pecava. E o arrependimento de um homem que já era filho de Deus, arrependimento aceitável diante de Deus. Mas como pretendo tratar de todo esse assunto nesta noite, vou deixar este personagem, para evitar desgastá-lo.

Davi também é um representante deste tipo de arrependimento, e eu recomendo que estudem com cuidado os salmos penitenciais dele, cuja linguagem é repleta de humildade e sincero arrependimento.

A confissão abençoada — O FILHO PRÓDIGO: “Pai, pequei…” (Lucas 15.18).

VII. Passemos agora ao último exemplo de que iremos tratar. E o caso do filho pródigo. Em Lucas 15.18, vemo-lo dizer: Pai, pequei contra o céu e diante de ti. Eis uma confissão abençoada! Eis aquilo que prova ter um homem se regenerado: Pai, pequei… Deixem-me retratar a situação. Eis o filho pródigo. Fugira de um bom lar e de um pai gentil e gastou todo o seu farto dinheiro com vícios e meretrizes, ficando sem nenhum. Busca seus antigos companheiros e pede-lhes ajuda. Os antigos amigos riem dele. “Oh”, diz ele, “quantas vezes beberam do meu vinho… servi de fiador em muitas de suas farras… não irão me ajudar?” “Tome jeito”, dizem a ele, que logo se vê sem opções. Procura todos aqueles com que havia feito amizade, mas ninguém lhe dá nada. Por fim, um criador de animais lhe diz: “Você quer algo para fazer, é isto? Bem, vá e alimente meus porcos”. O pobre filho de um rico proprietário de terras, que tinha tido imensa fortuna própria, tendo de alimentar porcos — e, ainda por cima, sendo judeu! O pior emprego (para ele) era, no entanto, sua única chance. Imaginem-no, usando vestes já desgastadas, alimentando porcos. Qual seria seu pagamento? Tão pouco que desejava encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam; e ninguém lhe dava nada (Lc 15.16). Olhem, lá está ele, em meio à sua “companhia” no chiqueiro, mergulhado em lodo e sujeira. De súbito, raia nele um pensamento, a ele enviado pelo bom Espírito. “Ora, ora”, pensa ele, quantos empregados de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, ir ei ter com o meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho: trata-me como um dos teus empregados (Lc 15.17–19). E então parte. Mendiga por todo o percurso, de cidade em cidade. Consegue por vezes que lhe deem carona, mas na maior parte do tempo galga colinas estéreis e desce por vales desolados, completamente só. Por fim, alcança a última montanha antes da vila e avista a casa de seu pai lá embaixo. Lá está a casa, com o álamo próximo a ela, os montes de palha que serviam de brincadeiras com o irmão… A visão do antigo ninho, todos os sentimentos e lembranças de sua vida assaltam-lhe a mente; as lágrimas correm-lhe pelo rosto, e chega até a pensar em dar meia-volta e fugir de novo, de tanta hesitação e vergonha. Pensa: “Pergunto-me se papai estará morto. Suponho que minha mãe tenha ficado com o coração partido quando de minha fuga; sempre fui o favorito dela. E ainda que esteja vivo qualquer um dos dois, nunca mais irá me querer ver; baterá a porta em minha cara. Que devo fazer? Não posso voltar, mas tenho medo de seguir em frente”. Enquanto ele assim elucubrava, passa o pai pelo terreiro, procurando pelo outro filho; e, apesar de o filho pródigo não haver reparado no pai, o pai o vê descendo a colina. Corre para a porteira, em direção ao filho perdido e, enquanto este ainda pensa em escapar se necessário, já estão os braços paternos ao redor do pescoço do filho, beijando-o de maneira bastante carinhosa e feliz, quando então começa o filho a se explicar: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho (Lc. 5.21);e já ia acrescentar Trata-me como um dos teus empregados (Lc 15.19), mas o pai leva a mão à boca do filho. “Basta”, diz ele. “Perdoo-lhe tudo; não diga nada sobre ser meu empregado — não aceitarei isso. Vem, pobre filho amado.” E voltando-se para os servos, ordena: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lo, e ponde-lhe um anel no dedo e alparcas nos pés; trazei também o bezerro cevado e matai-o; comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E, diz o texto, começaram a regozijar-se (Lc 15.22–24). Oh, que recepção calorosa e maravilhosa para um rei dos pecadores! Comenta o bom Matthew Henry: “Avistou-lhe o pai com olhos de misericórdia; correu para encontrá-lo com pernas de misericórdia; abraçou-lhe o pescoço com braços de misericórdia; beijou-o com beijos misericordiosos; disse a ele — e foram usadas palavras de misericórdia — Trazei o melhor traje. Houve provas de misericórdia, milagres de misericórdia — tudo era misericórdia. Oh, que Deus misericordioso”.

Você, filho pródigo, faça o mesmo. Deus está em seu coração? Há muitos aqui que de há muito correm dele. Deus não diz a você “Retorne”? Oh, pois então peço que retorne, pois garantido está que, no momento em que retornar, ele o irá aceitar. Jamais houve um pobre pecador que, vindo a Cristo, tenha sido por ele rejeitado. Oh, se você pudesse ao menos experimentar! “Ah, senhor, sou tão tenebroso, tão sujo, tão vil”. Chegue-se a ele — você não é mais perverso que o filho pródigo. Vá para a Casa de seu Pai e, tão certo como ele é Deus, ele manterá sua promessa: O que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora(Jo 6.37).

Oh, se eu soubesse ao menos que, hoje, alguns foram convencidos a chegar a Cristo, muito louvaria a Deus! Contarei aqui, pela honra de Deus e de Cristo, apenas mais um exemplo, e terei acabado. Lembram-se da manhã em que narrei o caso de um descrente que era um tremendo sarcástico e zombador, mas que, lendo um de meus sermões impressos, fora conduzido à casa de Deus e a seus pés? Pois bem: no último Natal, o mesmo homem reuniu todos os seus livros, dirigiu-se à feira de Norwich e ali realizou uma retratação pública de todos os erros que havia cometido, fazendo profissão de fé em Cristo e, tomando todos os livros perversos que havia escrito e tinha em casa, queimou-os à vista de todos. Louvei muito a Deus por essa maravilhosa obra da graça e rogo que muitas outras pessoas, mesmo que ainda sejam filhos pródigos, retornem ao lar, confessando ao Pai: Pequei.

SPURGEON, C. H. Milagres e Parábolas de Nosso Senhor: A Obra e o Ensino de Jesus em 173 Sermões Selecionados. São Paulo: Ed. Hagnos, 2016, pp. 1300–1307. [Nota: Sermão nº 113, pregado em 18 de janeiro de 1857]

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Luan Tavares
Luan Tavares

Written by Luan Tavares

“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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