Ações Falam Mais Alto Que Palavras?

Por Vincent Cheung. Extraído do Commentary on First Peter (2006) e de Reflections on First Timothy (2009).

Luan Tavares
11 min readOct 13, 2020

Nossa passagem¹ é frequentemente usada por pregadores para depreciar a pregação da palavra de Deus. Isso é feito não apenas pelas classes anti-intelectuais, mas mesmo aqueles que são amplamente conhecidos como campeões da pregação bíblica, quando se trata dessa e de outras passagens semelhantes, de repente exaltam o exemplo santo acima da pregação. Alguns deles até citariam o slogan anticristão irracional “Ações falam mais alto que palavras”, quando o fato é que ações nunca falam. Em vez disso, as ações devem ser explicadas por palavras, mas nunca é necessário que as palavras sejam acompanhadas por ações para demonstrar seu significado, verdade e coerência.

Devemos deixar claro o que queremos dizer aqui. Não negamos que a Escritura nos ordena que creiamos e obedeçamos a palavra de Deus. Ela requer que a preguemos aos outros e demonstremos sua mensagem e poder diante deles em nossas vidas. Ela condena como hipócritas aqueles que pregam, mas não praticam o que pregam. Tenhamos em mente que afirmamos tudo isso no que se segue.

Problemas surgem quando tornamos nosso exemplo mais importante do que nossa pregação, ou quando tornamos a eficácia da proclamação da palavra de Deus dependente de sua demonstração. É comum que pregadores e escritores cristãos insistam que nosso estilo de vida é o sermão mais eloquente, a apologética mais poderosa ou algo parecido. Alguns chegam a dizer que “Ninguém vai crer em você se sua vida não corresponder à sua mensagem”.

No entanto, a Bíblia não ensina nenhuma dessas falsas ideias. Ela afirma que um exemplo piedoso é importante, mas nunca diz que é mais importante ou mais eficaz do que a mensagem verbal, nem que a mensagem é impotente sem nosso exemplo piedoso. A Bíblia requer nosso exemplo piedoso como uma necessidade moral, o que significa que somos moralmente obrigados a praticar o que afirmamos e pregamos. Mas ela nunca apresenta nosso exemplo piedoso como uma necessidade intelectual ou prática. Em outras palavras, ela nunca diz que nosso ministério para os outros será totalmente ineficaz se formos hipócritas ou se deixarmos de praticar o que pregamos. Muito menos ela permite que pecadores ignorem o evangelho apenas porque ele foi entregue a eles por hipócritas.

Vamos examinar várias passagens relevantes. Isso não esgota a lista de passagens relevantes, mas depois de examiná-las, ficará evidente como as outras também foram distorcidas.

Paulo escreve em 1 Coríntios 9:27: “Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado”. Ele nunca diz que seu ministério se tornaria ineficaz se ele não subjugasse seu corpo, apenas que ele mesmo seria “reprovado” diante do Senhor.

Relacionado a isso está o chamado “capítulo do amor”, que na verdade se refere principalmente aos dons espirituais. Ele diz: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom de profecia, saiba todos os mistérios e todo o conhecimento e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá” (1 Coríntios 13:1–3). Ele nunca disse que os dons espirituais falhariam se os crentes os exercitassem sem amor, mas ele diz que aqueles que exercitam os dons sem amor nada disso valerá. A pessoa ainda poderia saber “todos os mistérios e todo o conhecimento”, e as montanhas ainda se moveriam.

Então, considere todos os exemplos na Escritura em que as pessoas creram no evangelho ao ouvi-lo. Eles nunca tiveram a chance de observar a vida dos discípulos. Como alguém pode alegar que a pregação é ineficaz a menos que seja apoiada por uma vida piedosa? Não, Paulo diz que algumas pessoas até pregam a Cristo por “ambição egoísta” e para “causar sofrimento” a ele (Filipenses 1:17). Ele não diz que a mensagem seria ineficaz, mas se alegra por Cristo estar sendo pregado (v. 18). O evangelho tem grande poder, mesmo se pregado por um homem explicitamente perverso. Ele colherá fogo e enxofre, mas o Espírito ainda pode usar suas palavras para converter multidões sem ter um exemplo piedoso para mostrá-las.

Jesus até mesmo diz aos seus discípulos para obedecerem à mensagem dos hipócritas: “Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles dizem a vocês. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam” (Mateus 23:2–3). Verdade é verdade. Deus condena a hipocrisia — nós não negamos isso. Mas só porque aquele que prega não vive de acordo não isenta aquele que o ouve de crer e obedecer.

Muitos incrédulos e apóstatas afirmam que rejeitaram ou abandonaram a fé cristã por causa de todos os hipócritas que eles veem. Os pregadores que exaltam o exemplo piedoso em relação à apresentação verbal fornecem a justificativa para perpetuar esse tipo de pensamento, mas o que eles devem fazer é opor-se a ele. A verdade é que apenas pessoas estúpidas nunca creem em hipócritas. Elas falham em fazer uma distinção simples entre o que as pessoas dizem e o que as pessoas fazem. Como resultado de seu pensamento irracional e talvez também de arrogância moral, eles se recusam a examinar o que uma pessoa diz para determinar se é verdade. Em vez disso, elas concluem que uma pessoa que não vive de acordo com o que diz também deve estar dizendo coisas erradas. Jesus não é tão tolo — ele deixa a distinção muito clara e ensina seus discípulos a fazerem o mesmo.

Se ninguém mais crê na verdade, creia você na verdade! Se ninguém mais vive pela verdade, viva você pela verdade! Tenha coragem espiritual e coragem moral. Nunca use o fracasso de outras pessoas como sua desculpa. A saída do covarde é dizer: “Ele é um hipócrita, portanto não tem credibilidade e sua mensagem deve ser falsa. Ele não pratica o que prega, então eu também não praticarei. Ele é um hipócrita, portanto, continuarei sendo um pecador consistente e completo”.

Essa era uma das coisas que eu me perguntava quando era pequeno. Fiquei admirado em ver como os “cristãos” hipócritas podiam fazer outros tropeçar. É claro que os hipócritas estavam errados, e a Escritura até mesmo afirma que eles estavam errados em fazer outros tropeçarem. Eu entendi isso. Mas também pensei que aqueles que tropeçaram por esse motivo devem ter sido pessoas incrivelmente estúpidas, e que sua fé, para começo de conversa, nunca foi genuína. A mensagem é verdadeira mesmo se houver hipócritas. Na verdade, nossa própria mensagem diz que haveria hipócritas. Portanto, quão estúpida pode ser uma pessoa, por tropeçar em hipócritas? Assim, tanto os hipócritas quanto aqueles que tropeçam neles são culpados. Eles não têm desculpa.

Portanto, em vez de permitir que toda a culpa recaia sobre os cristãos, mesmo os hipócritas, devemos expor o fato de que os incrédulos são estúpidos por raciocinarem da maneira que raciocinam. O pecador nunca está isento de crer e obedecer à mensagem do evangelho, visto que ao rejeitá-la, ele peca ao se rebelar à palavra de Deus — a hipocrisia daqueles que afirmam ser cristãos (sejam eles verdadeiros cristãos ou não) é logicamente irrelevante. A pregação do evangelho por si só fornece uma base suficiente para a fé, e o ouvinte é responsável por aceitá-la. Muitas vezes também é eficaz — há aqueles que, tendo sido regenerados por Deus, percebem que o evangelho é verdadeiro apesar do mau comportamento de alguns cristãos professos, e que então vêm prontamente ao arrependimento e à fé em Cristo.

Por outro lado, não podemos dizer o mesmo apenas sobre um exemplo moral, embora muitas pessoas creiam erroneamente que se pode ganhar outros para Cristo sem dar prioridade a uma mensagem verbal repleta de informações relevantes. O equívoco comum de que alguém pode ser uma testemunha de Cristo principalmente por meio de seu estilo de vida santo não se origina de um estudo exegético cuidadoso da Escritura, mas reflete a infiltração de filosofias não cristãs na igreja.

E quanto à nossa passagem, e aos versículos 1 e 2 em particular? Ela não diz que os maridos que “não obedece[m] à palavra, seja ganho sem palavras, pelo procedimento de sua mulher”? Sim, mas ganho para o quê? Para o hinduísmo? Para o mormonismo? Por fim, as esposas ou outras pessoas devem pregar a mensagem aos maridos. Isso ou vem no início, para ser reforçado e tornado atraente pelo padrão de vida piedoso que as esposas então demonstram, ou vem depois que sua vida de submissão e reverência ganhou a atenção dos maridos. Que esses maridos sejam aqueles que “não obedece[m] à palavra” provavelmente pressupõe que eles já a tenham ouvido e rejeitado a tentativa inicial de convertê-los.

Visto que a palavra já foi pregada a eles, isso significa que os maridos têm plena consciência de que a “conduta honesta e respeitosa” de suas esposas são exibidas como cristãs. A menos que a palavra de Deus seja pregada a eles, seria impossível para os maridos associar o bom comportamento de suas esposas à fé cristã. Pedro está de fato dizendo que o comportamento piedoso às vezes pode ser instrumental na conversão, mas ele pressupõe a necessidade de uma mensagem verbal. A conduta reverente das esposas é apenas o meio pelo qual Deus pode usar para fazer com que alguns dos maridos eleitos reconsiderem e então aceitem “a palavra” que eles devem crer para serem salvos.

Quer a pregação do evangelho venha antes ou depois, é sem dúvida a chave para a conversão, e não o exemplo piedoso. Na verdade, quer venha antes ou depois do exemplo piedoso, o marido ainda pode rejeitar a mensagem. Alguns versículos mais tarde, Pedro dirá: “Eles acham estranho que vocês não se lancem com eles na mesma torrente de imoralidade e por isso os insultam” (1 Pedro 4:4). Portanto, o comportamento piedoso não convence e converte automaticamente. Algumas pessoas podem apenas “achar estranho”. Sem uma explicação, as pessoas nem saberiam o que isso significa, por que um crente se comporta dessa maneira ou o que causou a mudança nele. Por outro lado, o marido pode crer na mensagem, apesar da vida ímpia ou hipócrita de sua esposa. Portanto, o princípio é um mandamento para a esposa, e não uma desculpa para o marido.²

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¹ Nota do Tradutor: O autor está comentando 1 Pedro 3:1–2.
² Para mais informações sobre o assunto, consulte Vincent Cheung, “By Word and Deed” em The Light of Our Minds.

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Vincent Cheung. Commentary on First Peter (2006), pp. 122–125. Tradução: Luan Tavares (12/10/2020).

A insistência da Bíblia de que um ministro “seja um exemplo”¹ não deve ser reduzida a outro clichê. Isso não ressoa com o slogan estúpido de que “ações falam mais alto que palavras”. Se ações falam mais alto que palavras, então eu quero que a pessoa que acredita nisso feche a boca e, sem palavras, me diga isso com suas ações. Se ações falam mais alto do que palavras, me diga essa afirmação com ações, não com palavras. Isso o salva de ser um hipócrita e também me permite ignorá-lo em paz e sossego. Em todo caso, mesmo que ele me desse um soco no rosto, sem proferir uma palavra de explicação, eu não derivaria de sua ação a proposição de que ações falam mais alto que palavras. Aqueles que falam mais alto sobre o volume das ações geralmente não têm ações notáveis ​​para mostrar. Eles apenas presumem que isso é o que deveriam dizer. A popularidade desse slogan, de fato, ilustra a necessidade da sã doutrina, visto que é devido ao pensamento descuidado que tal afirmação antibíblica foi aceita como ensino cristão correto.

Tanto as ações quanto as palavras são importantes, mas é necessária maior precisão para que possamos compreender como são importantes. Ao contrário do slogan, as ações não falam da mesma maneira que as palavras, de modo que as ações nunca podem falar “mais alto” do que as palavras, como se pudessem ser comparadas na mesma escala. É verdade que as ações podem “falar” em um sentido puramente figurativo, mas a fala não é feita até que os pontos que as ações deveriam fazer sejam colocados em palavras. No entanto, essas declarações seriam interpretações das ações. Não são as próprias ações, nem são declarações que surgem necessariamente das ações. Sejam verdadeiras ou falsas, válidas ou inválidas, são interpretações verbais de coisas que em si mesmas não falam e que não transmitem nenhuma informação.

Palavras verdadeiras são verdadeiras mesmo que as ações do falante não correspondam. Palavras verdadeiras impõem obrigações morais aos ouvintes de concordar e obedecer, mesmo que a pessoa que as pronuncia seja hipócrita. É comum que os pregadores nos avisem que se não andarmos em amor ou vivermos uma vida santa, então “ninguém” crerá em nosso evangelho, e alguns até dizem que ninguém deveria. Essa é a sabedoria do mundo, e a Bíblia é diretamente contra ela. Jesus disse aos seus próprios discípulos que eles deveriam fazer o que os fariseus diziam quando falassem em concordância com Moisés, mas não deveriam seguir o exemplo deles, visto que eles eram hipócritas (Mateus 23:1–3). A própria verdade carrega o poder de forçar a concordância e a autoridade de impor obrigações. É bastante pretensioso da parte das pessoas supor que esse poder e autoridade repousam em sua conduta.

Ainda assim, nossas ações são importantes, só que não são importantes para a comunicação de informações, e não são necessárias para a persuasão. Em vez disso, primeiro, é importante que nossa conduta seja consistente com nossa doutrina porque essa é nossa obrigação moral. O evangelho é verdadeiro quer nos conformemos ou não com ele, mas se formos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, então também nos esforçaremos para seguir seus mandamentos e ensinamentos. Segundo, embora nossas ações nada façam para transmitir a verdade, elas fornecem ilustrações da verdade que transmitimos por meio de nossas palavras, embora, uma vez que as ações não podem falar, essas próprias ilustrações devem ser apontadas e explicadas por nossas palavras. Terceiro, quando nossa conduta é consistente com nossa doutrina, isso serve como autenticação da autenticidade de nossa própria fé e ministério. Não é necessário autenticar a fé de Jesus Cristo, que é verdade não importa o que façamos, mas serve para nos autenticar como seus discípulos.

Quarto, embora nossa conduta não tenha uma relação necessária com a verdade da fé cristã, há muitas pessoas que fariam tal conexão em suas mentes e, portanto, quando nossa conduta é consistente com nossa doutrina, isso ajuda a convencer o irracional. Novamente, é um grande exagero dizer que “ninguém” creria em nossa doutrina quando nossa conduta não condiz, visto que o Espírito de Deus não é impotente, e o evangelho — não nossa conduta santa — é o poder de Deus para a salvação. Pela graça de Deus operando na mente de seus escolhidos, nem todos são estúpidos. Por que as inconsistências dos cristãos me impediriam de crer no evangelho? A própria Bíblia ensina que os crentes não são perfeitos. Eu vi isso mesmo enquanto lia a Bíblia quando eu era criança. Não é uma verdade complicada e oculta. E por que eu iria tropeçar por causa de algum escândalo na igreja, ou porque algum ministro famoso comete corrupção ou adultério? Isso é inteiramente consistente com o que a Bíblia prediz, então o que há para tropeçar? Por que eu duvidaria da fé cristã quando o que ela me diz que aconteceria realmente acontece? Mas algumas pessoas são estúpidas, e é nossa obrigação garantir que não permitamos que nossas ações se tornem pedras de tropeço para elas, por mais irracional que seja para elas percebê-las como tais.

Enquanto isso, não devemos tolerar essa conexão ilegítima entre conduta e verdade. Se permitirmos que ela se perpetue, implicitamente concedemos às pessoas permissão para descrer ou abandonar o evangelho com base em nossas falhas. Em vez disso, devemos seguir a política de Jesus, ou seja, os hipócritas são condenáveis, mas verdade é verdade mesmo quando sai da boca deles, e a obrigação moral imposta pela verdade permanece em pleno vigor. Em nossa pregação e ensino, devemos expor a falsa conexão. Contanto que Jesus Cristo não seja um hipócrita, o evangelho é verdadeiro e deve ser crido e obedecido. E se você tropeçar por causa do fracasso de outra pessoa, você não apenas é estúpido, mas continua culpado por violar a verdade do evangelho.

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¹ Nota do Tradutor: O autor está comentando 1 Timóteo 4:11–16.

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Vincent Cheung. Reflections on First Timothy (2009), pp. 49–51. Tradução: Luan Tavares (12/10/2020). Título meu.

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“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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