A Vontade de Deus
Vincent Cheung, Systematic Theology (2010).
A eleição de Deus de apenas algumas pessoas para a salvação é discutida ao longo do livro, porque a doutrina é declarada e assumida em toda a Escritura, de modo que é necessário mencioná-la repetidas vezes para dar sentido a outras doutrinas. E visto que já mencionamos os assuntos da eleição e da ira, devemos também considerar o atributo divino da VONTADE de Deus.[53]
Os teólogos distinguem entre a vontade “secreta” e a vontade “revelada” de Deus com base em Deuteronômio 29:29: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei”. As coisas secretas referem-se aos decretos de Deus, sobre que ele faria. As coisas reveladas referem-se aos preceitos de Deus, sobre o que devemos fazer. Como as duas não se sobrepõem, nunca há um conflito entre elas. Não há paradoxo ou contradição.
Há aqueles que afirmam que existem “duas vontades” em Deus, e isso é dito em um sentido que mantém uma tensão interna ou “mistério” para a doutrina. Mas é confuso e blasfemo.[54] Em vez disso, a Bíblia usa a palavra “vontade” em dois sentidos diferentes. E quando uma palavra é usada em dois sentidos diferentes, significa que duas palavras diferentes podem ser usadas em seu lugar. Se nós, para o propósito de uma discussão teológica precisa, anexarmos apenas um significado a uma palavra, então mesmo se continuarmos a usar a palavra “vontade”, ela será limitada a apenas uma coisa — ou decreto ou preceito, não ambos. Na verdade, podemos usar as palavras “decreto” e “preceito” e evitar completamente a palavra “vontade”.
Não é verdade que existem duas vontades em Deus. Não dizemos que existem dois decretos e dois preceitos em Deus, porque decreto e preceito referem-se a coisas diferentes. E é simplesmente ridículo dizer que existem duas vontades em Deus. Há uma vontade e um preceito, ou um decreto e uma vontade, ou há um decreto e preceito, mas não uma vontade e uma vontade. Uma vez que é indicado que existem duas ideias distintas que podem ser expressas com duas palavras diferentes, toda confusão desaparece, e a blasfêmia que apresenta Deus como insano desaparece junto com ela. A Bíblia não ensina que existem duas vontades em Deus, mas apenas usa a mesma palavra para se referir a duas coisas diferentes. Não haveria problema se os teólogos não fossem tão estúpidos ou tão ávidos para descobrir um paradoxo.
Em qualquer caso, “as coisas reveladas” incluem tudo o que está registrado na Escritura — os preceitos, mandamentos, doutrinas e predições de Deus. Porque a Escritura nos foi revelada, ela “pertence” a nós. E é o objetivo imediato ao qual devemos nossa lealdade e obediência — “para que sigamos todas as palavras desta lei”. Por outro lado, as “coisas encobertas” pertencem a Deus. As pessoas ficam desapontadas quando tentam descobrir a vontade secreta de Deus e, como resultado, muitas delas caem em sério erro espiritual. A própria natureza de sua vontade secreta é que ela está oculta, e aqueles que tentam penetrá-la sempre falharão. Eles perseguem visões, sonhos e profecias — às vezes até por meios proibidos, como astrologia e vários tipos de adivinhação.
Os cristãos devem afirmar a suficiência da Escritura, que “as coisas reveladas” contêm informações suficientes para os homens tomarem todos os tipos de decisões. A Bíblia é capaz de equipar uma pessoa “para toda boa obra” (2 Timóteo 3:17). Isso necessariamente significa que ela contém informações suficientes para que uma pessoa que a conhece e obedece perfeitamente nunca pense ou faça algo que desagrada a Deus. Claro, é verdade que ninguém conhece e obedece a Bíblia perfeitamente, mas isso é irrelevante para o que está sendo dito. Em vez disso, o ponto é que a Escritura contém todas as informações necessárias para a perfeição, visto que ela afirma que pode equipar uma pessoa para “toda” boa obra. Ela contém todas as informações de que uma pessoa precisa para viver uma vida totalmente aceitável a Deus. Pode não nos mostrar tudo o que desejamos saber para satisfazer nossa curiosidade, mas inclui tudo o que Deus deseja que saibamos. É suficiente para que não exijamos orientações adicionais ou pessoais sobre nossas vidas e circunstâncias para tomar decisões que agradam a Deus. Novamente, se vamos aprender e seguir a Bíblia é outra questão, mas a informação está disponível.
Quanto à vontade secreta de Deus, ela se refere a coisas que não sabemos até que aconteçam, e inclui coisas que não estão previstas na Escritura.[55] A vontade de Deus — isto é, seu decreto — determina todos os eventos, de modo que nem mesmo o pardal pode morrer a menos que decida que isso deve acontecer: “Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês” (Mateus 10:29).[56] Sua vontade está inseparavelmente ligada ao seu poder. Como ele declara em Isaías 46:10: “Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito permanecerá em pé, e farei tudo o que me agrada”. Ou seja, “Desde o início faço conhecido o fim” corresponde a “Farei tudo o que me agrada”. Suas previsões são mais do que meras previsões, mas também são declarações do que ele fará. Para Deus prever a hora e a maneira da morte de um pardal é revelar seu decreto ativo sobre a hora e a maneira de sua morte, ou a hora e a maneira de como Deus fará com que ele morra. Para Deus prever o que acontecerá é revelar o que ele fará. Tudo o que ocorre deve ser desejado e causado por Deus, caso contrário, todo o poder do universo não pode fazer isso acontecer.
Embora a Bíblia ensine diretamente a doutrina da eleição, esta doutrina a respeito da vontade de Deus em si mesma implica que Deus deve ser aquele que escolhe aqueles que receberão a salvação e que ele deve ser aquele que causa sua salvação. A salvação não depende da vontade ou da obra do homem, mas da misericórdia de Deus (Romanos 9:16).[57] E ele não é obrigado a ter misericórdia de ninguém, mas “Deus tem misericórdia de quem ele quer e endurece a quem ele quer” (Romanos 9:18).
A vontade de Deus determina todas as escolhas e circunstâncias de suas criaturas, de modo que nada depende do “livre-arbítrio” do homem. Na verdade, porque Deus é completamente soberano, o homem não tem livre-arbítrio:
Todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir. (Salmo 139:16)
O SENHOR faz tudo com um propósito; até os ímpios para o dia do castigo. (Provérbios 16:4)
Em seu coração o homem planeja o seu caminho, mas o SENHOR determina os seus passos. (Provérbios 16:9)
Os passos do homem são dirigidos pelo SENHOR. Como poderia alguém discernir o seu próprio caminho? (Provérbios 20:24)
O coração do rei é como um rio controlado pelo SENHOR; ele o dirige para onde quer. (Provérbios 21:1)
Todos os povos da terra são como nada diante dele. Ele age como lhe agrada com os exércitos dos céus e com os habitantes da terra. Ninguém é capaz de resistir à sua mão ou dizer-lhe: “O que fizeste?” (Daniel 4:35)
Ouçam agora, vocês que dizem: “Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro”. Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Em vez disso, deveriam dizer: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo”. (Tiago 4:13–15)
Todas as coisas são decididas e causadas por Deus — nada está livre de seu controle e ele não optou por renunciar a seu controle sobre nada. A doutrina é repulsiva para aqueles que abominam o governo e a honra de Deus, e por isso se opõem a ela. Mas a doutrina é uma fonte de conforto e celebração para aqueles que o amam. Por que desejaríamos de outra forma, senão que Deus governasse todas as coisas? E que vida melhor podemos desejar do que ser governados por Deus?
A doutrina contradiz a tradição religiosa de que Deus não decreta o mal ou que não causa o mal. É claro que Deus não faz decretos contra seus outros decretos. Porque Deus não é louco, ele tem apenas uma vontade, um desejo. No entanto, não há problema para ele emitir um decreto que faça com que suas criaturas violem seus preceitos. Enquanto os decretos são declarações de intenções sobre coisas que ele faria acontecer, os preceitos são declarações de definições, não de intenções, e não se sobrepõem aos decretos. Deve ser verdade que Deus decreta e causa eventos que são contrários aos seus preceitos; do contrário, não poderia haver mal, mas de fato existe o mal. Portanto, Deus deve ser o autor metafísico do pecado e do mal.
Isso não significa que o próprio Deus seja mau. Causar metafisicamente o mal e cometer o mal moralmente são duas coisas diferentes. Um é uma questão de capacidade de causar algo, enquanto o outro é uma questão de conformidade com um princípio. A Bíblia ensina que Deus é quem define o certo e o errado e que o pecado é uma transgressão da lei de Deus. Portanto, para Deus cometer o mal causando o mal — para isso ser mau ou errado — ele deve declarar uma lei moral que se proíbe de decretar ou causar o mal, isto é, decretar ou fazer com que suas criaturas transgridam sua lei. Não há base bíblica para supor que Deus declarou tal lei contra si mesmo. Na verdade, a Bíblia ensina que tudo o que Deus diz e faz é certo e bom. Se ele diz isso, deve ser verdade. Se ele fizer isso, deve ser bom. Portanto, visto que Deus é soberano e o mal existe, Deus deve ser a causa do mal e, visto que ele é a causa do mal, deve ser certo e bom para ele ser a causa do mal.
Não há lei divina que diga que Deus estaria errado se fosse a causa do mal. Por que, então, os homens presumem que seria mau para Deus ser o autor do pecado? Que lei Deus transgrediria? Ele transgrediria a lei dos homens, ou o que os homens impuseram a ele para definir o que um Deus justo deve ou não fazer. Esta é a verdade sinistra por trás da tradição religiosa que diz que Deus não é o autor do pecado, pois se fosse assim, isso significaria que ele transgrediu uma lei que os homens declararam contra ele. A conclusão necessária é que a doutrina de que Deus não é o autor do pecado, ou que é blasfêmia e heresia dizer que ele é, é ela mesma a verdadeira blasfêmia e heresia. A menos que Deus seja o autor do pecado e do mal, ele não é completamente soberano e não é Deus. Portanto, negar que Deus é o autor do pecado e do mal é negar a Deus.
A Bíblia ensina que os decretos e as ações de Deus são sempre corretos e bons. Visto que ele é completamente soberano, e há mal neste universo, isso significa que ele é quem decreta e causa o mal neste universo. Mas, uma vez que seus decretos e ações são sempre corretos e bons, isso significa que é certo e bom que ele seja aquele que decreta e causa o mal neste universo. O próprio fato de que ele decreta e causa o mal significa que é certo e bom para ele fazer isso.[58] Não há autoridade ou padrão superior a Deus para condená-lo. Se ele pensa que é bom causar o mal, então é bom causar o mal.
Isso não significa que o mal seja bom, o que seria uma contradição. O pecado é definido como uma transgressão da lei moral de Deus, e quando dizemos que Deus é o autor do pecado, estamos dizendo que Deus é a causa metafísica da transgressão da lei moral de Deus por uma criatura. Deus não transgride nenhuma lei moral, visto que não há lei moral contra o que ele faz, mas ele faz com que a criatura transgrida. Moralidade se relaciona com a lei moral. Mas não há lei moral contra o poder metafísico soberano. É certo e bom para Deus causar o mal metafisicamente, apenas porque ele o faz e porque ele não se declarou errado ao fazê-lo. É errado que o homem cometa o mal moralmente, porque Deus declarou que o homem está errado ao cometê-lo, embora seja Deus quem metafisicamente o faz com que o homem cometa o mal. Portanto, Deus permanece justo e o pecador continua mau. As distinções são claras. Não há paradoxo ou contradição, e também nenhuma base bíblica ou lógica para objeção contra a doutrina.
Isso faz de Deus um tirano? Se a palavra simplesmente significa “um governante absoluto”,[59] então é claro que Deus é um tirano. E visto que ele é a única autoridade moral, o próprio fato de ele ser um tirano significa que ele deve sê-lo, que é bom e justo para ele ser um tirano. As conotações negativas da palavra aplicam-se apenas aos seres humanos, uma vez que nenhum homem é digno de autoridade absoluta ou capaz de exercê-la. Mas Deus é “um governante absoluto” — isso é o que significa ser Deus.
━━━━━━━━━━━━━━━
[53] A vontade refere-se à função de tomada de decisão da mente. Não é uma parte da pessoa separada do intelecto.
[54] Veja Vincent Cheung, Blasphemy and Mystery.
[55] Veja Vincent Cheung, Godliness with Contentment, “Biblical Guidance and Decision-Making”.
[56] O ponto do versículo é que Deus controla tudo; portanto, o pardal não é a menor coisa que ele controla. Mesmo um floco de neve não pode cair onde caiu fora de seu decreto ativo.
[57] REB [Revised English Bible]: “Portanto, não depende da vontade ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus”.
[58] É por causa da soberania absoluta de Deus que a existência do mal não apresenta nenhum desafio à cosmovisão bíblica. Veja Vincent Cheung, The Author of Sin.
[59] Webster’s New World College Dictionary, Fourth Edition.
Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 90–94. Tradução: Luan Tavares (22/02/2021).
━━━━━━━━━//━━━━━━━━
© Vincent Cheung. A menos que haja outra indicação, as citações bíblicas usadas neste artigo pertencem à BÍBLIA SAGRADA, NOVA VERSÃO INTERNACIONAL ® NVI ® Copyright © 1993, 2000, 2011 de Sociedade Bíblica Internacional. Todos os direitos reservados.
Para mais conteúdos teológicos de Vincent Cheung, consulte https://www.vincentcheung.com/ ou As Obras de Vincent Cheung para materiais do autor em português.