A Unidade da Escritura

Extraído de Vincent Cheung, Systematic Theology (2010).

Luan Tavares
10 min readSep 5, 2021

A inspiração da Escritura implica a unidade da Escritura. O fato de que as palavras da Escritura procederam de uma mente divina racional implica que ela deve exibir coerência perfeita. Isso é o que encontramos na Bíblia. Embora a personalidade e o estilo literário de cada escritor sejam evidentes, o padrão e a unidade da Bíblia indicam um único autor divino. Cada documento escritural exibe perfeita consistência interna e todos os documentos são consistentes uns com os outros. A Bíblia nunca se contradiz.

Jesus afirma a coerência da Escritura, e ele assume isso em todos os seus ensinos e aplicações da Bíblia. Isso é demonstrado em sua resposta à tentação de Satanás:

Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’”. (Mateus 4:5–7)

Satanás incita Jesus a pular do templo com base no Salmo 91:11–12. Jesus responde com Deuteronômio 6:16, sugerindo que o uso da passagem por Satanás contradiz a instrução de Deuteronômio e, portanto, é uma aplicação incorreta. Quando uma pessoa interpreta uma passagem da Escritura de uma maneira que contradiz outra passagem, ele maneja mal o texto. O argumento de Cristo pressupõe a unidade da Escritura, e nem mesmo o diabo o questiona.

Em outra ocasião, quando Jesus confrontou os fariseus, seu desafio a eles pressupõe a unidade da Escritura e a lei da não contradição:

Estando os fariseus reunidos, Jesus lhes perguntou: “O que vocês pensam a respeito do Cristo? De quem ele é filho?” “É filho de Davi”, responderam eles. Ele lhes disse: “Então, como é que Davi, falando pelo Espírito, o chama ‘Senhor’? Pois ele afirma: ‘O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo de teus pés’. Se, pois, Davi o chama ‘Senhor’, como pode ser ele seu filho?” Ninguém conseguia responder-lhe uma palavra; e daquele dia em diante, ninguém jamais se atreveu a lhe fazer perguntas. (Mateus 22:41–46)

Visto que Davi estava “falando pelo Espírito”, ele não poderia ter errado. Mas se Cristo era descendente de Davi, como ele também poderia ser o Senhor de Davi? O fato de que isso representa um problema em primeiro lugar significa que tanto Jesus quanto os fariseus assumem a unidade da Escritura e a lei da não contradição. Se eles acreditam que a Escritura se contradiz, ou se eles pensam que uma pessoa pode afirmar duas proposições que se contradizem, então Jesus não estaria fazendo um ponto significativo. A resposta é que o Messias seria humano e divino e, portanto, “filho” e “Senhor” de Davi.

No entanto, é comum tolerar contradições na teologia. Alister McGrath escreve em seu livro Understanding Doctrine:

O fato de algo ser paradoxal e até autocontraditório não o invalida […]. Aqueles de nós que trabalharam no campo científico estão perfeitamente cientes da absoluta complexidade e mistério da realidade. Os eventos que estão por trás do surgimento da teoria quântica, as dificuldades de usar modelos na explicação científica — para citar apenas dois fatores que posso lembrar claramente de meu próprio período como cientista natural — apontam para a inevitabilidade do paradoxo e da contradição em qualquer coisa, exceto o envolvimento mais superficial com a realidade […].[6]

Isso é uma besteira. Admitindo que McGrath saiba ciência suficiente para falar sobre o assunto, isso é um testemunho contra a ciência, e não um argumento para abraçar contradições na teologia. Ele assume a confiabilidade da ciência e julga todas as outras disciplinas por ela. Seu pensamento é que, se há contradições na ciência, então as contradições devem ser aceitáveis, e devemos aceitá-las também na teologia.

No entanto, o fato de que a ciência frequentemente se contradiz é uma razão para sustentar que ela é irracional e não confiável, e não uma razão para permitir contradições em outros campos de estudo. A ciência é uma disciplina irracional de especulação sobre a realidade. Às vezes, suas teorias se correlacionam com os efeitos que desejamos, mas ele não consegue descobrir nenhuma verdade sobre a realidade. O conhecimento sobre a realidade vem de deduções válidas da revelação bíblica, e nunca de métodos científicos ou empíricos.[7] McGrath não dá nenhum argumento para que ignoremos ou toleremos as contradições na ciência; em vez disso, ele assume a confiabilidade da ciência apesar das contradições. Não há justificativa para isso.

O que torna a ciência o padrão pelo qual devemos julgar todas as outras disciplinas? O que dá à ciência o direito de estabelecer regras para todos os outros campos de estudo? McGrath afirma que a ciência aponta “para a inevitabilidade do paradoxo e da contradição em qualquer coisa, exceto o envolvimento mais superficial com a realidade”. Mas ciência não é teologia. A ciência se contradiz e desmorona, mas isso não significa que a teologia sofra o mesmo destino. De fato, McGrath tem um grande problema. Sua declaração implica que, a menos que Deus se contradiga quando fala conosco, suas palavras são “mais superficiais”. Ele está certo ao dizer que a ciência se contradiz, mas a aplicação à teologia é falsa.

Em qualquer caso, a teologia lida com Deus, que tem o direito e o poder de governar todo o pensamento e a vida. Deus conhece a natureza da realidade e a comunica a nós por meio da Bíblia. Portanto, é a teologia que faz as regras para a ciência, e um sistema bíblico de teologia não contém paradoxos ou contradições. Em sua tentativa de negar isso, McGrath se compromete com a blasfêmia de que Deus é inconsistente ou superficial. Ele parece pensar que se os homens não podem falar sobre a realidade sem contradições, então nem mesmo Deus pode nos falar sobre a realidade sem contradições. Isso é o quanto McGrath pensa dos homens, ou antes, é o quanto ele pensa sobre Deus.

Para qualquer proposição que afirma X, a proposição que a contradiz é aquela que afirma não-X. Isso é o que significa contradição. Qualquer proposição que afirme uma coisa é necessariamente também uma negação de seu oposto. Afirmar X é negar não-X, e afirmar não-X é negar X. Para manter isso simples, vamos supor que Y = não-X, de modo que o oposto de X é Y. Assim, afirmar X é negar Y e afirmar Y é negar X. Ou, X = não-Y e Y = não-X. Então, como afirmar uma proposição é negar seu oposto, afirmar X e Y ao mesmo tempo é o equivalente a afirmar não-Y e não-X. Portanto, afirmar duas proposições contraditórias é, na realidade, negar ambas. Mas afirmar tanto não-Y quanto não-X é também afirmar X e Y, o que novamente significa negar Y e X. E assim toda a operação torna-se sem sentido. O resultado é que é impossível afirmar duas proposições contraditórias ao mesmo tempo.

Afirmar a proposição “Adão é um homem” (X) é negar a proposição contraditória “Adão não é um homem” (Y, ou não-X). Da mesma forma, afirmar a proposição “Adão não é um homem” (Y) é negar a proposição contraditória “Adão é um homem” (X). Agora, afirmar tanto “Adão é um homem” (X) e “Adão não é um homem” (Y) é apenas negar ambas as proposições na ordem inversa. Ou seja, é equivalente a negar “Adão não é um homem” (Y) e “Adão é um homem” (X). Mas então voltamos a afirmar as duas proposições em ordem inversa novamente. Quando afirmamos ambas, negamos ambas; quando negamos ambas, afirmamos ambas. Portanto, não há significado inteligível em afirmar duas proposições contraditórias. É o mesmo que dizer nada e não acreditar em nada.

Para ilustrar, é claro que a soberania divina e a liberdade humana se contradizem.[8] Se Deus controla tudo, incluindo os pensamentos do homem, então o homem não é livre de Deus. Se o homem é livre de Deus em qualquer sentido ou grau, então Deus não controla tudo.[9] No entanto, alguns teólogos afirmam que a Bíblia ensina tanto a soberania divina quanto a liberdade humana e, portanto, insistem que devemos afirmar ambas. No entanto, uma vez que afirmar a soberania divina é negar a liberdade humana, e afirmar a liberdade humana é negar a soberania divina, então, afirmar ambas significa apenas rejeitar a soberania divina (na forma de uma afirmação da liberdade humana) e a liberdade humana (na forma de uma afirmação da soberania divina). Mas negar ambas significa afirmar ambas na ordem inversa, e afirmar ambas significa negar ambas na ordem inversa novamente.

O resultado necessário é que a pessoa que afirma acreditar tanto na soberania divina quanto na liberdade humana não acredita em nenhuma das duas. Ao afirmar que acredita em toda a Bíblia, ela na verdade não acredita em nada dela. Neste exemplo, visto que a Bíblia afirma a soberania divina e nega a liberdade humana, não há contradição — nem mesmo aparente. Por outro lado, quando os não cristãos alegam que a encarnação de Cristo acarreta uma contradição, o cristão não tem a opção de negar nem a divindade nem a humanidade de Cristo. Em vez disso, ele deve formular a doutrina como a Bíblia a ensina e mostrar que não há contradição. O mesmo se aplica à doutrina da Trindade. Em qualquer caso, se uma pessoa afirma ver contradições na Bíblia, isso significa que ela não acredita na Bíblia— e não pode acreditar nela.

Uma resposta popular é que essas são apenas contradições aparentes; isto é, as doutrinas só parecem contradições para a mente dos homens, mas estão em perfeita harmonia na mente de Deus. Essa resposta é fútil. Não há diferença entre uma contradição aparente e uma contradição real quando se trata de afirmá-la. Permanece que afirmar uma coisa é negar a outra ao mesmo tempo, de modo que afirmar ambas é negar ambas, e que negar ambas é afirmar ambas novamente. Portanto, a pessoa que afirma uma contradição aparente realmente nada afirma e nada nega. Se a contradição é apenas aparente, é irrelevante. Contanto que pareça real para a pessoa, é real o suficiente.

Além disso, como uma pessoa pode distinguir entre uma contradição aparente e uma contradição real? Ela nunca pode saber que uma contradição é apenas aparente. A menos que ela saiba como resolver a aparente contradição, ela parecerá o mesmo para ela como uma contradição real. E se ela sabe que uma contradição é apenas aparente, então ela já a resolveu, e o termo contradição não se aplica mais. Se devemos tolerar contradições aparentes, então devemos tolerar todas as contradições. Frequentemente desafiamos as visões não cristãs alegando que elas se contradizem. Mas se tolerarmos contradições aparentes, então não há nada que impeça os não cristãos de alegar que as contradições em suas cosmovisões são apenas aparentes.

D. Martyn Lloyd-Jones ilustra como a tradição de abraçar o paradoxo envenenou nossa teologia. Ele faz os cristãos parecerem tolos diante do mundo. Isso é tão ridículo que devo fazer questão de dizer que se trata de dois parágrafos consecutivos, sem interrupção entre eles:

Acima de tudo, é preciso que percebamos que há certas coisas que nós, com nossas mentes finitas, não seremos capazes de reconciliar umas com as outras. Ora, estou tentando evitar o uso de termos técnicos tanto quanto posso, mas aqui devo introduzir a palavra antinomia — não antimônio. O que é uma antinomia? É uma posição em que você recebe duas verdades que você mesmo não consegue reconciliar. Existem certas antinomias finais na Bíblia e, como pessoas de fé, devemos estar prontos para aceitá-las. Quando alguém diz: “Oh, mas você não pode reconciliar esses dois”, você deve estar pronto para dizer: “Não posso. Eu não presumo ser capaz. Eu não sei. Eu acredito no que me é dito na Escritura”.

Pois bem, aproximamo-nos desta grande doutrina assim: à luz das coisas que já consideramos sobre o ser, a natureza e o caráter de Deus, esta doutrina dos decretos eternos deve seguir como uma necessidade total e absoluta. Devido Deus ser quem é e o que Ele é, Ele tem de operar da maneira como Ele opera. Como vimos, todas as doutrinas da Bíblia são consistentes umas com as outras, e quando estamos considerando qualquer doutrina em particular, devemos lembrar que ela deve sempre ser consistente com todas as demais. Portanto, à medida que estudamos o que a Bíblia nos diz sobre a maneira como Deus age, devemos tomar muito cuidado para não dizermos algo que contradiga o que já afirmamos sobre Sua onisciência, Sua onipotência e todas as demais coisas, que juntos temos concordado estarem nas Escrituras.[10]

No primeiro parágrafo, ele insiste em contradição. No segundo, ele insiste em coerência. É difícil determinar o motivo preciso dessa loucura. Talvez o primeiro parágrafo mostre que ele foi infectado com a tradição humana de que existem contradições na Bíblia, sejam aparentes ou reais, e que a piedade acarreta paradoxos. E talvez o segundo parágrafo expresse o que ele é compelido a admitir, que se a Bíblia é verdadeira, deve ser consistente, e que se devemos entender a Bíblia, ou se devemos afirmar a Bíblia, então devemos perceber que ela é autoconsistente, sem contradições aparentes ou reais. Em qualquer caso, ele diz: “Há certas coisas que nós, com nossas mentes finitas, não seremos capazes de reconciliar umas com as outras”. Mas se esses dois parágrafos fornecem alguma indicação, pareceria que algumas mentes são imensamente mais finitas do que outras.[11]

Os cientistas e os não cristãos podem chafurdar em contradições, mas os cristãos não devem tolerá-las. Em vez de abandonar a unidade da Escritura ou a lei da não contradição como uma “defesa” contra aqueles que afirmam que as doutrinas bíblicas se contradizem, devemos afirmar e demonstrar a perfeita harmonia dessas doutrinas. Por outro lado, os cristãos devem expor a incoerência das crenças não cristãs e desafiar seus adeptos a abandoná-las.

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[6] Alister McGrath, Understanding Doctrine; Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1990; p. 138.
[7] Veja Vincent Cheung, Ultimate Questions e Presuppositional Confrontations.
[8] A doutrina da soberania divina será discutida e aplicada ao longo deste livro. Veja também Vincent Cheung, Commentary on Ephesians e The Author of Sin.
[9] A doutrina do compatibilismo ensina que o homem não é livre de Deus, mas que o homem ainda é livre em certo sentido. No entanto, a menos que o tipo de liberdade em consideração seja a liberdade de Deus, isso é irrelevante, visto que o tópico diz respeito ao controle de Deus sobre o homem. Veja Vincent Cheung, The Author of Sin.
[10] D. Martyn Lloyd-Jones, Great Doctrines of the Bible, Vol. 1 (Crossway), p. 95–96. [Nota do Tradutor: Traduzido em português como Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1. Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, pp. 128–129.]
[11] Veja Vincent Cheung, Blasphemy and Mystery.

Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 19–24. Tradução: Luan Tavares (05/09/2021).

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“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

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