A Imutabilidade e a Impassibilidade de Deus
Vincent Cheung, Systematic Theology (2010).
A IMUTABILIDADE de Deus decorre de sua eternidade. Como não existe “antes” ou “depois” em Deus, ele permanece o mesmo em seu ser e caráter. Este atributo também está associado à sua perfeição. Se Deus é perfeito em todos os sentidos, qualquer mudança nele deve ser para pior. Mas como ele é imutável, ele não pode mudar para pior. E como ele já é perfeito em todos os aspectos, ele não precisa mudar nem se desenvolver.
O Salmo 102:25–27 diz que, embora o universo físico sofra decadência e pereça, Deus permanece o mesmo:
No princípio firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; envelhecerão como vestimentas. Como roupas tu os trocarás e serão jogados fora. Mas tu permaneces o mesmo, e os teus dias jamais terão fim.
Deus diz em Malaquias 3:6: “Eu, o SENHOR, não mudo”. E ele diz em Isaías 46:11: “O que eu disse, isso eu farei acontecer; o que planejei, isso farei”, e o Salmo 33:11 diz: “Os planos do SENHOR permanecem para sempre, os propósitos do seu coração, por todas as gerações”. Números 23:19 diz: “Deus não é homem para que minta, nem filho de homem para que se arrependa. Acaso ele fala, e deixa de agir? Acaso promete, e deixa de cumprir?”. E Tiago escreve que Deus “não muda como sombras inconstantes” (Tiago 1:17). Deus permanece o mesmo não apenas em seu ser e caráter, mas todos os seus pensamentos e decretos permanecem os mesmos.
A imutabilidade de Deus implica a IMPASSIBILIDADE de Deus. Isso significa que Deus não tem “paixões” — emoções ou sentimentos. Os crentes menos ponderados protestam contra a doutrina, visto que aplicam incorretamente as passagens bíblicas que parecem descrever um Deus que experimenta emoções como tristeza, alegria e ira (Salmo 78:40; Isaías 62:5; Apocalipse 19:15).
As passagens que parecem atribuir emoções a Deus são antropopatismos. Os oponentes da impassibilidade divina argumentam que isso evita o ensino óbvio da Escritura. Ela descarta como antropopatismo o que não desejamos associar a Deus. No entanto, essas mesmas pessoas concordariam que as referências bíblicas que atribuem a Deus partes do corpo, como mãos e olhos, são antropomorfismos. Aqueles que pensam que Deus realmente tem um corpo físico não devem nem mesmo ser considerados cristãos. Portanto, não se deve rejeitar o antropopatismo como uma explicação sem uma boa razão.
Visto que a Bíblia ensina que Deus é espírito e que não tem forma (João 4:24 e Deuteronômio 4:12, 15), qualquer passagem que fala sobre Deus como se ele tivesse um corpo é obviamente figurativa. Quando são entendidos dessa maneira, os dois tipos de passagem fazem sentido, ao passo que interpretá-los na direção oposta não faria. Ou seja, se for pensado que Deus tem um corpo físico, então aquelas passagens que dizem que ele é espírito e que ele não tem forma gerariam confusão, se não contradição total. E esse problema surgiria porque elas não deveriam ser interpretadas dessa forma.
A Bíblia é consistente nisso. Quando ela fala sobre o ser de Deus, ensina que ele é espírito e que não tem forma. Quando ela fala sobre sua habilidade e seu obra, às vezes usa antropomorfismos, de modo que se refere a suas mãos, braços, olhos, orelhas e assim por diante. O primeiro se refere ao que ele é, e o último se refere ao que ele faz. A diferença é muito definida e fácil de perceber. Na verdade, dadas aquelas passagens que nos falam sobre o ser de Deus, seria herético interpretar as outras passagens como ensinando que Deus tem um corpo. Da mesma forma, dado o que a Bíblia nos diz sobre o ser de Deus, seria herético dizer que ele tem emoções que se assemelham aos sentimentos e flutuações humanas.
A visão de que Deus experimenta emoções como os homens parece implicar uma série de contradições:
Um homem pode ficar com raiva contra sua vontade no sentido de que ele não escolhe ficar com raiva, e ele escolhe não experimentar o que quer que cause a raiva, mas que o “gatilho” incita essa emoção nele contra sua preferência. Isso se aplica às experiências humanas de alegria, medo, tristeza e assim por diante. Embora alguém possa desenvolver um nível notável de autocontrole pelo poder da Escritura e do Espírito Santo, permanece que a vontade e a emoção de uma pessoa não mantêm um relacionamento exato. Seu estado emocional nem sempre é exatamente como ele deseja ou decide que seja. No entanto, isso não pode ser verdade com Deus, mesmo que ele experimentasse emoções, porque essa falta de autocontrole contradiz sua onisciência, soberania e imutabilidade.
Visto que Deus é onisciente, ele não pode se surpreender isso pelo menos elimina certas maneiras de experimentar emoções. Suponha que eu fique com raiva porque um homem me insultou neste exato momento. É improvável que eu ainda estivesse com raiva dois mil anos no futuro. E se eu soubesse há dois mil anos que ele me insultaria hoje, é improvável que ficasse com raiva quando ele o fizesse. Na verdade, se eu tivesse dois mil anos para considerar seu insulto, quando ele realmente me insultar, talvez eu nem reaja.
Talvez a resposta seja que todos os fatos estão simultaneamente presentes a Deus, de modo que o insulto que o irrita está sempre acontecendo “agora”. Mas isso significaria que Deus deve ficar zangado com este insulto por toda a eternidade, e não apenas quando isso acontecer. Nesse caso, então as emoções de Deus não nos ofereceriam o tipo de interatividade que os proponentes das emoções divinas procuram. Em qualquer caso, suponha que algo aconteça que alivia essa raiva. Claro, a única maneira é o perdão por meio do sacrifício de Jesus Cristo. Mas, uma vez que Deus conhece o sacrifício de Cristo tão bem quanto o insulto do homem, não sabemos se ele fica com raiva ou não. O experimento mental resulta em absurdo, porque a verdade é que Deus não é como o homem, porque ele não é homem.
Então, se uma ação minha pode causar raiva em Deus da mesma forma que eu posso causar raiva em um homem, então isso significa que posso causar raiva em Deus pelo meu poder. Na medida em que carece de autocontrole, ele fica impotente contra meus esforços para causar raiva nele. Da mesma forma, se uma ação minha pode produzir alegria em Deus da mesma forma que eu posso produzir alegria em um homem, então isso significa que tenho a capacidade de produzir alegria em Deus à vontade. Dessa maneira, eu exerceria uma medida significativa de controle sobre Deus. Mas isso contradiz sua soberania e imutabilidade.
A questão se torna muito mais complexa quando levamos em conta que ele conhece simultaneamente todos os pensamentos e ações de suas criaturas em toda a história. Mas é suficiente considerar todos os bilhões de pessoas que o irritam a qualquer momento, e os milhares ou pelo menos centenas de pessoas que o agradam ao mesmo tempo. Como é possível para ele ficar com raiva de dois bilhões de pessoas no mesmo sentido que a raiva do homem e satisfeito com duzentas pessoas, também no sentido humano, ao mesmo tempo? Se a resposta for que a mente de Deus é imensa, de modo que ele não está sujeito às limitações humanas, então nosso ponto também está estabelecido. Não há garantia de dizer que Deus é extremamente semelhante ao homem em alguns aspectos, como se limitado por muitas das limitações do homem, mas que ele é completamente superior ao homem em outros aspectos, como se ele não tivesse nenhuma das limitações do homem.
Portanto, alguma forma de impassibilidade divina é necessária. Se Deus está zangado com nossos pecados, é apenas porque ele deseja ficar zangado com eles, e não porque seu estado mental está sujeito à nossa vontade ou além de seu controle. Mesmo que Deus tenha emoções, elas estão sob seu controle e nunca comprometerão seus atributos divinos. E uma vez que elas não podem comprometer os atributos divinos, isso também significa que mesmo que ele tenha emoções, ele não as tem de uma maneira semelhante ao homem. Mas então nos perguntamos por que ainda os chamaríamos de emoções. Assim, pelo menos neste sentido e nesta extensão, devemos afirmar que Deus não tem paixões.
Os cristãos que foram influenciados pela psicologia e filosofia modernas estão ansiosos para defender as emoções, tanto no homem quanto em Deus. Embora eles possam reconhecer que as passagens bíblicas que se referem a Deus como se ele tivesse um corpo físico são exemplos de antropomorfismo, eles se recusam a admitir que aquelas passagens que se referem a Deus como se ele tivesse emoções são exemplos de antropopatismo. No entanto, eles não foram capazes de oferecer uma desculpa para essa hipocrisia.
O dicionário define “emoção” como “perturbação, excitação; o aspecto afetivo da consciência; um estado de sentimento; uma reação psíquica e física (como raiva ou medo) vivenciada subjetivamente como um sentimento forte e fisiologicamente envolvendo mudanças que preparam o corpo para uma ação vigorosa imediata”.[32] A palavra originalmente se refere a uma perturbação da mente. Embora esse significado agora esteja obsoleto na fala coloquial, mesmo no uso comum, continua sendo uma “reação psíquica e física”. Na minha opinião, uma definição de emoção deve incluir a ideia de uma perturbação da mente que pode interferir com o processo normal de pensamento racional. A perturbação em si não carrega uma conotação negativa, mas é uma descrição do que acontece, embora uma perturbação da mente, é claro, muitas vezes produza consequências negativas.
Ao contrário do ensino popular, a Bíblia nunca diz que a mente consiste em vontade, intelecto e emoção. Essa divisão se origina da psicologia secular, não da psicologia bíblica. Segundo esse esquema, a vontade, o intelecto e a emoção são partes distintas da mente, de modo que a mente só é real como o agregado dos três. Uma vez que eles estão relacionados, mas independentes, não há uma relação necessária entre o desenvolvimento de cada parte. Portanto, os cristãos que assumem essa estrutura costumam dizer que uma pessoa deve não apenas desenvolver seu intelecto, mas também deve desenvolver sua emoção. Mas, se essa estrutura for falsa, a recomendação nos diz para fazer algo que não pode ser feito, pois pressupõe uma divisão da mente que não existe. O resultado é um desenvolvimento espiritual pervertido.
A Bíblia ensina que a parte interior do homem é a mente. A vontade e a emoção não são coisas em si mesmas, mas meramente funções da mente. Para ilustrar, a digestão não é um órgão separado ou dentro do estômago, mas o estômago é o órgão físico, e a digestão é a função desse órgão. Da mesma forma, a mente é a parte interna e incorpórea do homem. Às vezes, ela fica perturbada e uma perturbação da mente afeta o modo como ela pensa, geralmente de forma negativa. Portanto, a emoção não é boa em si mesma. Embora a Bíblia não chame todas as emoções de pecaminosas, muitas emoções podem de fato ser pecaminosas, e emoções pecaminosas muitas vezes levam a outros pecados:
O SENHOR disse a Caim: “Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas, se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo”. (Gênesis 4:6–7)
Os cristãos não precisam de mais emoções; eles precisam de mais autocontrole. A Bíblia não contém tantas palavras ou frases emocionais quanto as pessoas querem acreditar. Algumas pessoas podem até interpretar mal o contentamento em Filipenses 4:12 como uma satisfação emocional, isto é, antes de perceberem que é uma palavra estoica que denota indiferença. E “feliz” é mesmo uma emoção na Bíblia? O amor não é uma emoção na Bíblia, mas uma vontade. O homem espiritual é marcado pelo autocontrole e alcançou domínio sobre suas emoções. A mente de Deus é tão integrada que ele faz apenas o que deseja. À medida que aumentamos em fé e santidade, nossa emoção deve ficar cada vez mais sob nosso controle consciente, de modo que ficamos animados porque decidimos ficar animados, ficamos com raiva porque decidimos ficar com raiva e podemos parar quando decidirmos parar.
Jesus experimentou emoções, mas o que podemos inferir disso? Ele também sentiu fome e fadiga (Mateus 21:18; Lucas 4:2; João 4:6), mas isso só prova que o Filho de Deus tomou sobre si uma natureza humana. Assim como Jesus em sua natureza divina não experimentou fome ou fadiga, ele em sua natureza divina não experimentou emoções. Apenas sua natureza humana experimentou fome, fadiga e emoções. Os casos em que ele experimentou emoções foram de fato perturbações da mente (Marcos 14:34), e como Hebreus 4:15 diz que ele nunca pecou, concluímos que nem toda perturbação da mente é pecaminosa. No entanto, é inválido inferir disso que as emoções são boas ou que não devem ser restringidas ou suprimidas. Portanto, o fato de Jesus ter experimentado emoções apenas prova que ele possuía uma natureza humana e que nem toda perturbação da mente é pecaminosa.
Por outro lado, os Evangelhos mostram que Jesus sempre teve controle total sobre si mesmo. Ele estava tão perturbado antes de sua prisão que sangrou pela pele, mas nunca perdeu o controle. Ele pôde orar a Deus, resolver cumprir sua vontade e repreender seus discípulos por adormecerem. Ele estava sob pressão intensa, mas manteve o controle total de suas funções mentais e físicas. Às vezes acontecem coisas que nos perturbam, mas ser perturbado na mente não faz parte da santificação. Uma pessoa não é santa ou espiritual apenas porque sua mente flutua como as ondas do oceano. Em vez disso, o autocontrole de Cristo em face das circunstâncias mais perturbadoras — sua fé para caminhar sobre águas tempestuosas — é o que seus seguidores devem imitar.
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[32] Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary, Tenth Edition.
Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 58–62. Tradução: Luan Tavares (24/02/2021).
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