A Cognoscibilidade e a Incompreensibilidade de Deus

Vincent Cheung, Systematic Theology (2010).

Luan Tavares
8 min readFeb 26, 2021

Os atributos divinos são as características de Deus, cuja soma constitui a definição de quem ele é. A COGNOSCIBILIDADE de Deus é o primeiro assunto. Visto que Deus é infinitamente maior que os seres humanos, surge a questão de saber se podemos entendê-lo. Respondemos que, porque Deus criou o homem conforme a imagem divina, não importa a diferença entre Deus e o homem, há um ponto de contato entre eles de modo que a comunicação é possível. O fato de Deus ter escolhido falar conosco através da Bíblia significa que a linguagem humana é suficiente e, portanto, é possível obter informações confiáveis ​​e detalhadas sobre Deus a partir de sua revelação verbal.

É autorrefutável argumentar que o homem não pode conhecer a Deus devido à diferença entre os dois, porque a afirmação em si assume um conhecimento considerável sobre Deus. Uma pessoa que diz que Deus é incognoscível está afirmando uma informação sobre a própria essência de Deus. Mas se Deus é realmente incognoscível, ninguém pode saber que ele é incognoscível. O fato de termos a ideia de Deus em nossas mentes e podermos debater o assunto demonstra que Deus pode ser conhecido.

Da mesma forma, é autorrefutável dizer que a linguagem humana é insuficiente para comunicar informações sobre as coisas de Deus, porque a própria afirmação comunica uma informação sobre as coisas de Deus. Essa informação é que as coisas de Deus são tais que a linguagem humana não pode descrevê-las ou se referir adequadamente a elas. Mas, já que essa informação descreve e se refere à própria essência das coisas de Deus, ela refuta a si mesma.

A linguagem é sempre adequada. Para ilustrar, podemos usar “X” para designar qualquer ideia ou combinação de ideias, e sempre será adequada, pois as palavras são apenas símbolos arbitrários que podem se referir a qualquer coisa. A questão é se os seres humanos têm a capacidade de pensar sobre Deus, não se as palavras são adequadas para falar sobre ele. E Deus criou os seres humanos à sua imagem, eles podem realmente pensar sobre Deus, falar sobre Deus e entender Deus.

A Bíblia ensina que Deus se revelou através das palavras da Escritura. Nada mais é necessário para resolver o problema. Ela estabelece que Deus é cognoscível e que a linguagem humana é suficiente. Deus é capaz de nos falar sobre si mesmo, e somos capazes de entender o que ele nos diz.

Tendo determinado que Deus é cognoscível, o próximo ponto diz respeito ao quanto podemos saber sobre ele. Como Deus revelou tudo o que há na Bíblia e, pelo menos em princípio, é possível entender toda a Bíblia e todas as suas implicações lógicas, isso representa o mínimo do que podemos saber sobre Deus nesta vida. Se acrescentarmos a isso o fato de que aprenderemos incessantemente cada vez mais sobre Deus após esta vida, a extensão do conhecimento de Deus possível para nós é, para dizer o mínimo, considerável. De fato, visto que é improvável que alguém aprenda toda a Bíblia e todas as suas implicações em sua vida, se por nenhuma outra razão a não ser que o tempo de vida humano seja bastante breve, suspeitamos com razão daqueles teólogos que parecem tão obcecados com impor limitações no conhecimento de Deus para o restante de nós.

A Bíblia realmente ensina a INCOMPREENSIBILIDADE de Deus, mas não no sentido afirmado pela maioria dos teólogos. O Salmo 145:3 diz que é “insondável” a sua grandeza (ARA), e o apóstolo Paulo escreve em Romanos 11:33: “Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos!”. É digno de nota que a declaração de Paulo é feita depois que ele respondeu clara e definitivamente a todas as perguntas que levantou sobre Deus, o homem e o plano de salvação até aquele momento da carta aos Romanos. Deus é incompreensível apenas no sentido de que sempre há mais para saber, e não que não possamos saber. Ainda mais ridícula é a visão usual de que não podemos nem saber ou entender o que ele claramente revelou na Bíblia.

Deus é infinito e nós somos finitos; portanto, nunca podemos saber tudo sobre Deus. Mas apenas porque não podemos saber tudo sobre Deus não significa que não podemos saber nada sobre ele ou conhecê-lo de maneira precisa e definida. Em nosso contexto, “compreender” significa ter uma compreensão exaustiva, de modo que nada mais resta para saber. Nesse sentido, é impossível para seres finitos compreender um ser infinito. Não importa o quanto de Deus dê-se a conhecer, sempre haverá mais para saber sobre ele.

Como Deus é infinito, é possível fazer um número infinito de proposições verdadeiras sobre ele. Por outro lado, somos finitos e podemos processar apenas um número limitado de proposições a qualquer momento. Portanto, seria impossível conhecermos um número infinito de proposições, pois sempre haverá mais para saber. Essa limitação permanecerá até mesmo após a ressurreição dos crentes. Embora nossas capacidades intelectuais sejam amplamente aprimoradas, permaneceremos finitos e, portanto, Deus permanecerá inesgotável para nós.

Dito isto, permanece que podemos saber muito sobre Deus. Podemos saber e entender tudo o que a Bíblia afirma e implica sobre ele. Jeremias 9:24 diz que uma pessoa pode conhecer e entender o próprio caráter de Deus, que é quem age “com lealdade, com justiça e com retidão sobre a terra”. A doutrina da incompreensibilidade de Deus não anula a possibilidade de conhecimento verdadeiro e abundante sobre ele pelos seres humanos finitos. Antes, quanto mais pensamos em sua incompreensibilidade, mais nos lembramos da abundância de informações que ele já nos revelou na Bíblia, e de como nem mesmo essa fonte de informações se esgotará nesta vida.

Portanto, embora reconheçamos a incompreensibilidade de Deus como um corolário de sua grandeza e imensidão, ela não é algo que nos imponha qualquer limitação real. Certamente há uma diferença ontológica entre uma biblioteca com muitos livros para ler na vida de uma pessoa e uma biblioteca com um número infinito de livros, mas não há diferença prática. Dizer que a biblioteca é misteriosa ou que não podemos entender nenhum dos livros da biblioteca porque possui um número infinito de livros, portanto, é simplesmente errado e estúpido.

E o argumento de que cada livro da biblioteca é profundo demais para entender? Isso representa a visão de que não apenas a revelação é tão extensa que não há como entrar em contato total com ela, mas não podemos sequer entender com o que temos contato. A resposta simples é que os teólogos não têm o direito de falar por nós. Se eles insistem que são estúpidos demais para entender qualquer parte da Bíblia, então isso é problema deles, mas a menos que haja uma base bíblica — uma base bíblica que eles possam entender? — eles não podem impor essa limitação ao restante da humanidade.

Como a própria Bíblia não ensina a visão de que todas as suas doutrinas ou proposições são profundas demais para que mentes finitas entendam, isso é apenas uma invenção humana para exibir uma falsa humildade ou se desculpar de afirmar o que está claramente escrito. E, como isso representa a doutrina tradicional da incompreensibilidade de Deus, devemos denunciá-la como uma doutrina falsa e condenável. Ela desonra a Deus e engana o seu povo. Em vez disso, dizemos que Deus nos fala na Bíblia, e ele fala de uma maneira que possamos entender. Se tivéssemos tempo, diligência e graça, em princípio poderíamos aprender tudo isso. Esta é a única visão que honra a Deus e a Escritura, que liberta o povo de Deus para desfrutá-lo e adorá-lo, e deixa claro que o mundo inteiro é obrigado a crer e obedecer ao livro — todo ele.

Devemos derrubar qualquer teólogo que apele à incompreensibilidade de Deus a fim de negar a cognoscibilidade de Deus. Embora não possamos possuir um conhecimento exaustivo sobre ele, podemos de fato possuir um conhecimento verdadeiro — uma série de conhecimento verdadeiro — sobre ele. Tudo o que Deus nos revela nas palavras da Bíblia é verdadeiro, e temos verdadeiro conhecimento sobre Deus na medida em que conhecemos e entendemos essas palavras.

Eu posso saber o nome ou a idade de uma pessoa sem saber mais nada sobre ela, mas isso não significa que meu conhecimento limitado sobre ela seja falso. É verdade que quanto mais eu souber sobre uma pessoa, melhor entenderei o que já sei sobre ela; no entanto, o que eu já sei sobre ela é verdade. Ao obter informações adicionais sobre uma pessoa, eu adquiro um contexto mais rico para entender os antecedentes e implicações do que eu já sei, como seu nome ou idade, mas meu conhecimento sobre seu nome ou idade era verdadeiro mesmo antes de obter o adicional em formação. Da mesma forma, embora não tenhamos conhecimento exaustivo sobre Deus, o que sabemos sobre ele na Bíblia é, no entanto, confiável e preciso, e completo até onde vai.

Os cristãos que não entendem certas doutrinas bíblicas às vezes desistem chamando-as de “mistérios”, mas o conhecimento de Deus nos adverte contra isso. Essa tendência de rotular as doutrinas bíblicas como mistérios expõe um defeito em sua mentalidade. Muitas vezes, isso decorre de um mal-entendido da natureza da revelação, ou mesmo de uma atitude preguiçosa ou rebelde em relação à Escritura. Talvez a pessoa realmente entende a doutrina, mas se recusa a aceitá-la. Como não pode negar a base bíblica da doutrina, ela a chama de mistério, para que não precise afirmá-la.

Por exemplo, muitas pessoas consideram a doutrina da eleição divina um mistério. No entanto, como a Bíblia ensina a doutrina e nos diz o que pensar sobre ela, não devemos chamá-la de mistério, mas antes uma doutrina clara que todos os cristãos devem afirmar. Uma doutrina como a eleição divina que foi revelada e explicada não é um mistério.[29] Como Deus revelou uma grande quantidade de informações sobre o assunto, é um ensino claro que exige aceitação universal. Uma pessoa que fecha os olhos para a Bíblia e insiste em chamar a doutrina de mistério está em flagrante rebeldia à revelação divina. Não é que ela não entende, mas que ela não quer aceitá-la, mas é desonesta demais para admiti-la e tem muito receio de dizê-la diante de Deus.

Recusar-se a entender ou aceitar qualquer coisa que a Bíblia ensina é insultar o Deus que nos deu o dom inestimável da revelação. A obsessão pela incompreensibilidade de Deus não é um sinal de reverência por ele, mas de incredulidade e desobediência. Essa tendência não deve ser equiparada à piedade, e não deve ser encorajada entre os crentes, mas deve ser desprezada, repreendida e destruída.[30]

━━━━━━━━━━━━━━━
[29] Um “mistério” na Bíblia não se refere a algo que o homem não pode entender. Pelo contrário, é algo que não foi totalmente dito ao homem antes, mas que agora é mais amplamente dito e explicado (veja Romanos 16:25–26, 1 Coríntios 15:51–54, Efésios 3:4–6, Colossenses 1:25–27, 2:2–3). Assim, a palavra tem a ver com a cronologia da revelação de Deus, em vez da limitação intelectual do homem. De fato, quando a Bíblia chama algo de “mistério”, é um sinal claro de que fomos informados sobre isso e que podemos entendê-lo.
[30] Veja Vincent Cheung, “The Incomprehensibility of God” [A Incompreensibilidade de Deus].

Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 51–55. Traduzido por Luan Tavares.

━━━━━━━━━//━━━━━━━━

© Vincent Cheung. A menos que haja outra indicação, as citações bíblicas usadas neste artigo pertencem à BÍBLIA SAGRADA, NOVA VERSÃO INTERNACIONAL ® NVI ® Copyright © 1993, 2000, 2011 de Sociedade Bíblica Internacional. Todos os direitos reservados.

Para mais conteúdos teológicos de Vincent Cheung, consulte https://www.vincentcheung.com/ ou As Obras de Vincent Cheung para materiais do autor em português.

--

--

Luan Tavares
Luan Tavares

Written by Luan Tavares

“Tudo é possível àquele que crê.” (Marcos 9:23 NVI)

No responses yet