A Clareza da Escritura
Extraído de Vincent Cheung, Systematic Theology (2010).
Os cristãos devem evitar dois extremos em relação à clareza da Escritura. Alguém afirma que a Escritura é totalmente obscura para a pessoa mediana, de forma que apenas um grupo de profissionais de elite pode interpretá-la. A outra visão afirma que a Escritura é tão simples que nada nela é difícil de entender e que nenhum treinamento em hermenêutica é necessário para lidar com o texto. Por extensão, a exposição de um teólogo experiente não é mais confiável do que a opinião de uma pessoa iletrada.
A posição anterior fecha a Escritura para a população em geral e impede qualquer pessoa de desafiar as interpretações de profissionais. Mas a outra posição também é perigosa. A Bíblia não é tão simples que qualquer pessoa possa interpretá-la com igual facilidade e precisão. Referindo-se aos escritos de Paulo, o apóstolo Pedro diz: “Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender”. Ele adverte que os “ignorantes e instáveis torcem” as palavras de Paulo, “como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2 Pedro 3:16).
Muitas pessoas gostariam de se considerar competentes em assuntos importantes como teologia e hermenêutica, mas em vez de orar por sabedoria e estudar a Escritura, elas meramente presumem que são tão capazes quanto os teólogos ou seus próprios pastores. Essa maneira de pensar resulta em confusão e desastre. Qualquer pessoa pode ser ensinada a compreender melhor a Bíblia. Não é necessário ser treinado por professores e seminários. É possível até ser autodidata, aprender nos livros, ou mesmo como diz Paulo, ser ensinado por Deus. De uma forma ou de outra, uma pessoa deve ser ensinada e treinada. A educação, diligência, reverência e dotação divina de uma pessoa — tudo contribuem para sua habilidade de interpretar e aplicar a Bíblia.
Há quem considere a educação no seminário o único treinamento adequado. É claro que muitos deles são alunos e formandos do seminário, e essa afirmação eleva sua espécie a uma forma de sacerdócio exclusivo. Mas é puro lixo e não há razão para ninguém aceitá-lo. Na verdade, o próprio fato de eles esposarem essa invenção humana mostra que sua educação no seminário é inadequada e que permanecem grosseiramente incompetentes e não espirituais. O Espírito Santo não está morto e não há nada na Bíblia que exija que ele ensine seu povo por meio de seminários ou mesmo por meio de igrejas. Qualquer um que afirme o sacerdócio de todos os crentes, que só Cristo é o mediador entre Deus e o homem, também deve concordar que é possível que qualquer um aprenda a Bíblia e seja guiado por Deus à verdade sem nenhum mestre humano. Só porque a igreja é uma instituição ordenada por Deus não significa que seja outro mediador entre Deus e o homem junto com Jesus Cristo. Ela faz o que Deus diz que ela faz e nada mais. No entanto, permanece o ponto que, não importa como isso aconteça, uma pessoa deve receber ensino confiável sobre as doutrinas da Escritura e a interpretação da Escritura. Qualquer pessoa que afirma uma interpretação deve ser capaz de fornecer uma explicação sóbria, reverente e lógica para ela.
Isso não é para anular o lugar de pregadores e teólogos, mas para manter seu papel como servos de Cristo, e não como uma classe de crentes de elite. Na verdade, embora muitas passagens da Bíblia sejam fáceis de entender, algumas delas requerem diligência e sabedoria extra para interpretar. É possível para uma pessoa ler a Escritura e obter dela compreensão e conhecimento suficientes para a salvação, embora às vezes possa precisar da ajuda de um crente confiável:
Então Filipe correu para a carruagem, ouviu o homem lendo o profeta Isaías e lhe perguntou: “O senhor entende o que está lendo?” Ele respondeu: “Como posso entender se alguém não me explicar?” Assim, convidou Filipe para subir e sentar-se ao seu lado. (Atos 8:30–31)
Também é possível aprender os princípios básicos da fé cristã lendo a Bíblia sem ajuda humana. Mas algumas passagens podem ser difíceis de entender. Nesses casos, uma pessoa pode solicitar a ajuda de pregadores e teólogos para explicar as passagens, mas devemos insistir que eles nunca são necessários em nenhum caso particular, visto que somente Cristo é o verdadeiro mestre e mediador.
Neemias 8:8 afirma o lugar do ministério da pregação: “Leram o Livro da Lei de Deus, interpretando-o e explicando-o, a fim de que o povo entendesse o que estava sendo lido”. A autoridade final está nas declarações da Escritura, e não nas interpretações dos eruditos. A Bíblia nunca está errada, embora nossa compreensão e inferências dela possam às vezes ser inválidas.[13] Por isso, toda igreja deve treinar seus membros em teologia, hermenêutica e lógica, para que manejem melhor a palavra da verdade.
Portanto, embora a doutrina da clareza da Escritura conceda a cada pessoa o direito de ler e interpretar a Bíblia, ela não elimina a necessidade de mestres na igreja, mas sim afirma sua importância. Paulo escreve que Deus estabeleceu o ofício ministerial do mestre, e que ele designou indivíduos para cumprir o papel (1 Coríntios 12:28). Mas Tiago avisa que muitos não devem estar ansiosos para assumir este cargo: “Meus irmãos, não sejam muitos de vocês mestres, pois vocês sabem que nós, os que ensinamos, seremos julgados com maior rigor” (Tiago 3:1). Em outro lugar, Paulo escreve: “Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, ao contrário, tenha um conceito equilibrado” (Romanos 12:3). O ofício é uma responsabilidade séria. É perigoso reivindicá-lo por orgulho ou ambição.
Quanto àqueles a quem Deus escolheu e dotou para serem ministros da doutrina, eles são capazes de lidar com as passagens mais difíceis da Escritura, e podem extrair informações valiosas delas que podem enganar os outros. Efésios 4:7–13 refere-se a este ofício como um dos dons de Cristo para sua igreja e, portanto, os cristãos devem valorizar e respeitar aqueles que estão em tal ministério.
Esta geração despreza a autoridade. As pessoas odeiam que lhes digam o que fazer ou em que acreditar, embora pensem assim em parte porque foram instruídas a fazê-lo. A maioria das pessoas não respeita nem mesmo a autoridade de Deus ou da Escritura, muito menos a autoridade da igreja e seus ministros. Elas consideram sua opinião tão boa quanto a dos apóstolos, ou pelo menos a dos pregadores e teólogos. A religião delas é democrática, não autoritária. Mas a Bíblia ordena que os cristãos obedeçam a seus líderes: “Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles seja uma alegria, não um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês” (Hebreus 13:17). Todo cristão tem o direito de ler a Bíblia e seguir a Deus diretamente, tendo Cristo como seu único mediador. Mas isso não deve se traduzir em rebeldia ilegítima[14] contra o ensino instruído dos eruditos ou a autoridade dos líderes da igreja.
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[13] No entanto, isso não torna a interpretação uma questão de mera opinião, visto que a validade das inferências da Escritura é uma questão objetiva — isto é, a lógica é objetiva — de forma que todas as interpretações podem ser provadas ou refutadas com uma certeza objetiva.
[14] Visto que não há diferença entre obedecer a Deus e obedecer à Escritura, e visto que a Escritura é nosso contato direto com a vontade revelada de Deus, o objeto imediato de nossa lealdade é a Bíblia (Atos 17:11), pela qual podemos testar os ensinamentos e práticas daqueles com conhecimento e autoridade na igreja. Portanto, os ensinamentos e práticas que negam as doutrinas bíblicas constituem base suficiente para desafiar a autoridade humana. “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” (Atos 5:29).
Vincent Cheung. Systematic Theology (2010), pp. 27–29. Tradução: Luan Tavares (31/05/2021).
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